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5 de setembro de 2020
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18:14

Boaventura e a palavra, presumo, de todos nós

Por
Sul 21
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Boaventura e a palavra, presumo, de todos nós
Boaventura e a palavra, presumo, de todos nós
Tarso Genro (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Tarso Genro (*)

É preciso construir dentro da ordem as capilaridades políticas, econômicas e morais, que bloqueiem o fascismo nas suas raízes e o capitalismo na sua reprodução da vida comum, onde ela se expande sem piedade e sem solidariedade. É preciso bloquear a voz da irracionalidade com a voz da razão e da igualdade.. Tempo passado, tempo presente e tempo futuro, nunca estiveram tão compactados no cotidiano como agora: é preciso  construir a ordem nova dentro da vida perversa atual, sem medo e com destemor.

No jornal português “Público”, neste 5 de setembro, Boaventura Sousa Santos publica um artigo – dos melhores que li até hoje – sobre a chamada situação “pós-pandemia”. É a indeterminada situação política – ainda sem marcos temporais e sem encerramento previsto – desafiando os sinais firmes da evidência empírica, intimando a nossa teoria política emergencial, já em estado visivelmente depressivo. O título  do artigo é muito sugestivo e para nós deve soar como meio desesperado: “A hora da esquerda: agora ou só daqui a muito tempo.” (artigo reproduzido também no Sul21)

Embora o texto trate da situação portuguesa, em especial, Boaventura registra três lições às forças de esquerda (e a todos que não desistiram da democracia e da república) que cabem plenamente no cenário brasileiro. É inevitável falarmos nestas lições para prepararmos o reverso do fascismo, que avança sobre o Estado, amparado numa improvável aliança com o que tem de mais esperto, corrupto e insensível, no campo do liberalismo rentista. Os enunciados feitos por Boaventura são universais e portanto adaptáveis para pensar a crise em qualquer aldeia deste insensato mundo.

Primeira lição: os cidadãos em momentos de crise são protegidos pelo Estado, não pelo mercado. E sabem disso. Não se trata de uma questão de “má” moralidade das instâncias mercantis, mas da sua situação objetiva. Elas estão ali para dar lucro, não para fazer proteção social e se o empreendimento não funcionar por esta via ele morre na concorrência e, com ele, desaparecem os próprios empregos. De outra parte, se em situação de crise sanitária o funcionamento do mercado deve ser restringido -para evitar o contágio- o funcionamento do Estado deve ser expandido para combatê-lo. A superioridade do Estado em relação ao mercado na crise é a superioridade evidente do Estado Social sobre o Estado de Direito tradicional, no qual o direito de propriedade é absoluto e as questões sociais são apenas casos para a Polícia e, no fascismo, para as milícias.

A segunda lição refere às relações cidade-campo, à oferta e circulação dos alimentos da agricultura familiar, sadios, orgânicos e de procedência menos duvidosa do que aqueles que são oferecidos “em abstrato” no mercado tradicional oligopolizado. Refere esta lição, também, à valorização das lojas e feiras de proximidade – para oferta destes alimentos – a sua comercialização e produção cooperadas, à entrega domiciliar personalizada e às novas relações de confiança pessoal -entre ofertantes e compradores- que apontam para a possibilidade da construção de “modos de vida” e de consumo, com maiores possibilidades de entendimento entre produtores e consumidores, que inclusive podem influir na tipologia e no comportamento dos grandes negócios atacadistas.

O MST, a Via Campesina e os agricultores familiares, no entorno da cidades de todos os portes, não só demonstraram que o comércio, a industrialização e a produção de alimentos sadios -fora do circuito do grande agronegócio- podem ser tanto um instrumento pelo qual se incentiva a solidariedade para combater a fome, como igualmente pode mudar -aqui e agora- uma boa parte da vida comum. E o faz adiantando exemplos para o futuro, que apontem para um controle do sociometabolismo do capitalismo,
rentista e oligopolizado, que é sempre para mais renda concentrada e mais miséria diversificada.

O terceiro exemplo que nos lega a tragédia da Pandemia diz respeito à legislação do trabalho, cuja flexibilização anárquica demonstra que as precariedades que substituem a proteção ao emprego e o trabalho contratual clássico, só criam  formas de vulnerabilidades agravadas. No concreto, ao invés de financiar as empresas na crise -mormente as pequenas e médias, que são as maiores ofertantes de emprego- os Governos “liberais” financiam os Bancos privados, cada vez mais próximos da especulação com dinheiro público e cada vez mais distantes das empresas que produzem os bens de consumo e empregos para o mercado interno.

A precariedade, a informalidade e o desemprego -nesta hipótese- só podem ser amortecidos pelas ajudas emergenciais, que não só aumentam a dívida  pública, mas também alimentam o reinado dos bancos que financiam o Estado, permanentemente devedor. O mundo pós-Pandemia, na verdade, hoje só existe como ficção da ciência política. Ele será o que permitirmos que ele seja, pela ausência da nossa voz complacente ou pela nossa energia política, despertada pela solidariedade na luta contra o fascismo, o negacionismo e a corrupção.

Grande alertas do grande Boaventura.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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