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6 de dezembro de 2015
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08:30

Santa Emília, com amor

Por
Sul 21
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Por Selvino Heck

Era uma vez uma Linha que virou Vila. Foi chamada Santa Emília e comemora 150 anos de colonização alemã em dezembro de 2015. Sou filho desta pequena comunidade do interior do interior do Rio Grande do Sul, no município de Venâncio Aires, este conhecido como a Capital Nacional do Chimarrão.

É uma Vila cheia de histórias, como não poderia deixar de ser. O centro da história é a colonização alemã. Tal como acontece hoje na distante Europa, quando imigrantes de outras terras nela buscam abrigo, no século XIX os países latino-americanos, particularmente o Brasil, apareciam como a Terra Prometida para os europeus. Entre morrer de fome e/ou não ter como constituir família e poder criar os filhos, a melhor opção, se é que havia escolha, era emigrar para um mundo diferente e desconhecido, de outra língua e costumes.

Deram-se bem, mas aqui encontraram nativos, alguns fugidos da escravidão, outros livres, que lhes deram guarida, terra e até um cemitério, chamado Cemitério dos Machado.

1865, ano da chegada dos primeiros imigrantes alemães em Santa Emília, não é 2015 e vice-versa. Muito do que trouxeram da Alemanha felizmente está presente e vivo em 2015.

Eram/são, a maioria, um faz-tudo, tanto homens quanto mulheres. Antes e acima de tudo, eram/são agricultoras/es. Mas eram/são também marceneiros, funileiros, artesãos, fazedores de farinha, comerciantes, açougueiros, professores. Eram/são doceiras, costureiras, mestres na cozinha e leitoras.

Era/é gente de fé, de culto, de leitura da Bíblia e oração. No meu caso, família católica (há também evangélicos na comunidade), oração/reza era/é sagrada antes das refeições, em outros tempos, terço durante a semana, missa ou devoção nos domingos.

Eram/são gente de comunidade. Imediatamente após cuidar do bem-estar da família, vem o cuidado com a comunidade, a vida em comum, o bem-estar coletivo.

Eram/são gente de alegria, festa, baile, a cerveja (lá em casa também o vinho) acompanhando batizados, casamentos, jogos de futebol e qualquer encontro ou celebração.

Eram/são gente de dança, música, arte, cultura. A leitura de jornais e livros faz parte do cotidiano, os grupos culturais, o coro da igreja envolvendo famílias e comunidades.

Eram/são gente de solidariedade. As próprias necessidades eram/são as necessidades dos vizinhos e membros da comunidade. Por exemplo, ajudar a carnear um boi ou um porco; estar presente nas tragédias, temporais, falecimentos; nas urgências, ir na roça do outro colher a soja antes de chegar a chuva, cuidar na madrugada do forno de fumo (tabaco) de quem precisasse ou estivesse doente.

Os primeiros prédios a serem construídos na comunidade, não se sabe bem qual vinha antes, ou se vinham juntos, e sustentados por ela: a escola e/ou a igreja. Depois, um salão de baile, uma cancha de corrida de cavalo, uma de bolão. Muito tempo depois, os campos de futebol, os ginásios. O resto era/é trabalhar e viver dignamente.

Os valores fundamentais daqueles tempos permanecem: o sentido de justiça, de ajudar o vizinho, de dar estudo para os filhos, de trabalho coletivo e solidário, de cuidar das crianças e dos mais velhos.

A língua alemã, origem, história e lembrança dos antepassados, ainda que a duras penas, continua presente e viva. Em alguns lugares, é matéria e aprendizado obrigatório nos bancos escolares.

Casas grandes, sala e (muitos) quartos (por causa dos muitos filhos) separados da cozinha, com paredes grossas e largas, centenárias algumas, velhos galpões, tudo construído com as próprias mãos, resistem ao tempo.

Os imigrantes incorporaram o churrasco e o chimarrão, a valsa misturou-se ao vanerão, as danças folclóricas juntaram-se aos CTGs (Centros de Tradições Gaúchas).

Festejar 150 anos não é todos os dias. Felizes os que como eu podem estar presentes, como em 1965, quem sabe em 2065, nos 200. É história pura, é passado, presente e futuro.

Felizes as comunidades de São Miguel, Nossa Senhora de Lourdes, São Luiz, 25 de Julho, São Pedro, da Vila Santa Emília, que fazem parte desta história de vida, fé e esperança.

Felizes as famílias e seus descendentes. Construíram uma história na paz e convivência com diferentes culturas, sem perder costumes, saberes, tradições. Deram riqueza ao Rio Grande do Sul e ao Brasil. Misturaram-se a povos de outras origens, portugueses, africanos, indígenas, italianos, poloneses, árabes, judeus, latino-americanos, haitianos, japoneses. E eram/são hoje e desde sempre brasileiros da gema, plenamente brasileiros.

Sou filho desta terra. Cresci numa família de agricultores familiares de nove filhos, uma avó (não conheci o avô, que veio direto da Alemanha) com 16 filhos, aprendi a falar alemão antes do português, ler a Bíblia em alemão gótico, fui para a escola aos seis anos sabendo ler e escrever, trabalhei na roça e cultivei os valores fundamentais que me guiam na vida.

Santa Emília, sesquicentenária, é meu chão. Nela estão fincadas as raízes mais fundas. É um dos berços e fontes onde bebo e alimento meus sonhos. Saúdo Santa Emília, com amor.

.oOo.

Selvino Heck é Assessor Especial da Secretaria de Governo da Presidência da República.


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