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28 de outubro de 2012
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08:30

‘Expropriações’

Por
Sul 21
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Sou do tempo em que havia dois tipos de expropriações. Na luta pela redemocratização do Brasil, militantes de esquerda e da luta armada buscavam nos bancos e em outros lugares – o caso mais famoso, o cofre do Ademar – recursos para defender a democracia dos que usurparam a soberania popular. E nas piores secas do Nordeste, milhares de famélicos invadiam mercados ou onde houvesse comida, garantindo o pão de seus filhos. Ambas as formas de expropriação justificavam-se ante a sociedade: a luta pela democracia levava a gestos extremos, assim como a fome obriga a buscar os alimentos onde eles existem.

Hoje, nem um nem outro tipo de expropriação é necessário ou seria legitimado política e socialmente. A democracia está sendo construída e se consolidando no Brasil. O Nordeste vive uma das piores secas das últimas décadas e não se tem notícia de hordas, para usar um termo da moda da época, de pobres e famintos invadindo cidades e supermercados, porque as políticas sociais dos governos Lula e Dilma, a partir dos Programas Fome Zero e Brasil Sem Miséria, atendem minimamente os mais pobres entre os pobres.

Mas vem uma notícia do outro lado do mundo, em manchete de primeira página: “Expropriação de alimentos agita Espanha – Na Espanha, sindicalistas invadem supermercados”. Diz mais: “Nesta semana, centenas de membros do Sindicato Andaluz de Trabalhadores (SAT), que representa trabalhadores rurais do sul da Espanha, invadiram um supermercado e levaram mais de dez carrinhos de alimentos. No dia seguinte, pressionaram outro supermercado a doar alimentos. Foram sinais claros da insatisfação crescente com a grave crise econômica e os planos de austeridade do governo. Membros do SAT prometeram realizar mais atos de ‘expropriação’ de alimentos, para chamar a atenção para o impacto do alto índice de desemprego na região, de 34% (Valor Econômico, 10/11/12/13 de agosto de 2012.) Diz Jose Caballero, um dos organizadores dos saques: “Esse é um ato de desespero em nome das famílias que estão em situações desesperadoras”.

Leio noutro jornal outra manchete: “Nunca houve época melhor para os ricos – Menos de 25% dos indivíduos com grande fortuna pessoal se dizem pessimistas em relação à sua riqueza futura” (Michel Lind, Estadão, 20.10.2012, p. B36). Diz o articulista: “Vamos esquecer da recessão. Na história humana, não houve época melhor para os membros do clube mais exclusivo do mundo: o dos ultra-ricos. Em 2010, o economista Emmanuel Saez concluiu: ‘No primeiro ano da recuperação, o 1% dos mais ricos captou 93% do aumento da renda’. Em 2010, o 1% dos mais ricos do planeta detinha 44% da riqueza global, segundo o Credit Suisse. Ao mesmo tempo, a metade mais pobre da população mundial – cerca de 3,5 bilhões de pessoas – hoje detém menos de 1% da riqueza global, e muitas não conseguem suportar o ônus da alta dos preços dos alimentos. Os ricos são realmente diferentes do resto da humanidade. Eles se recuperam muito mais rapidamente das catástrofes econômicas globais.”

Dizer mais o que? Dizer que os sindicalistas e trabalhadores andaluzes estão errados? Ou dizer que a política econômica neoliberal, que só favorece bancos e banqueiros que mandam e governam muitos países europeus, está errada? Ou ainda dizer que as políticas sociais do Estado de Bem-Estar social europeu foram abandonadas, levando ao empobrecimento geral, à fome e a ‘expropriações’ inéditas num mundo e países que se diziam ricos e que, agora se vê, são apenas dos ricos e ultra-ricos?

E não vale dizer que só há um caminho. O Brasil e a América Latina estão mostrando ‘à farta’ que as opções podem ser outras: investir em políticas sociais priorizando os mais pobres, apostar no mercado interno, garantir a participação social, acreditar na organização da sociedade, colocar o Estado a serviço da maioria e do desenvolvimento.

Mas a própria Europa tem exemplos concretos de que o caminho não precisa ser único. Escreve Vladimir Safatle, em ‘Um país estranho” (Folha de São Paulo, 23.10.12): “ A Islândia é uma ilha com pouco mais de 300 mil habitantes que parece decidida a inventar a democracia do futuro.”

A Islândia foi um dos primeiros países a quebrar com a crise financeira de 2008. Mas ao contrário da Grécia, “submeteu a plebiscito propostas de ajuda estatal a bancos falidos. E o povo islandês não se fez de rogado e disse claramente que não pagaria nenhuma dívida de bancos”. Mais. Os executivos dos bancos foram presos e o primeiro-ministro que governava o país à época da crise foi julgado e condenado. E o povo islandês escreveu uma Nova Constituição, que diz no seu preâmbulo: “Nós, o povo da Islândia, queremos criar uma sociedade justa que ofereça as mesmas oportunidades a todos. Nossas diferentes origens são uma riqueza comum e, juntos, somos responsáveis pela herança de gerações.”

Ou seja, mais democracia e respeito à vontade popular. Vladimir Safatle termina o artigo assim, e eu assino em baixo: “A Islândia cresceu 2,1% no ano passado e deve crescer 2,7% neste ano. Eles fizeram tudo o que Portugal, Espanha, Grécia, Itália e outros não fizeram. Ou seja, eles confiaram na força da soberania popular e resolveram guiar seu destino com as próprias mãos. Algo atualmente muito estranho.”

Na Islândia, não se justificam ‘expropriações’. Aliás, elas não são nem um pouco necessárias. O povo constrói a democracia e tem o que comer todos os dias.

Selvino Heck é Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República


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