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23 de novembro de 2017
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10:29

Aprender com a esquerda chilena: uma alternativa política radical, anticapitalista e com força eleitoral

Por
Sul 21
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Aprender com a esquerda chilena: uma alternativa política radical, anticapitalista e com força eleitoral
Aprender com a esquerda chilena: uma alternativa política radical, anticapitalista e com força eleitoral
Jornalista de 46 anos, Beatriz Sánchez foi candidata da coligação Frente Ampla. (Divulgação)

Samir Oliveira

As eleições presidenciais realizadas no Chile em 19 de novembro colocam a perspectiva de um novo ciclo político para o país e de uma renovação em curso da esquerda latino-americana. Contrariando todas as pesquisas, a esquerda radical conquistou 20% dos votos e por muito pouco não foi para o segundo turno contra a direita.

A Frente Ampla, uma coalizão de partidos e movimentos de esquerda fundada em janeiro deste ano, garantiu seu lugar na política chilena com a eleição de 20 deputados, tornando-se a terceira força do país – atrás dos social-democratas, com 43 cadeiras, e da direita, com 73 parlamentares. A candidata que representou esta nova alternativa foi a jornalista Beatriz Sánchez, que conquistou 1,3 milhão de votos, apenas 2% a menos que o segundo colocado, o governista Alejandro Guillier, que disputará o segundo turno contra o conservador ex-presidente Sebastián Piñera.

O resultado eleitoral demonstrou a falácia das pesquisas de intenção de votos, que previam 41% de apoio a Piñera e apenas 8% a Beatriz. A vitória da direita no primeiro turno teve um gosto amargo.

A consagração da Frente Ampla é um rompimento com o regime praticamente bipartidário que reina no Chile após o fim da ditadura (1990), com a alternância de poder entre a coalizão da direita e a coalizão de centro-esquerda. Estes dois polos estão desgastados e envolvidos em denúncias de corrupção, com suas respectivas lideranças envelhecidas e sem possibilidade de encabeçar um processo real de mudanças.

Os ventos da mudança vieram de longe e já sopravam em 2016

As eleições municipais de 2016 já indicavam que uma nova alternativa política iria se consolidar no Chile. Naquele ano, a maior parte das candidaturas governistas da Nueva Mayoría foram derrotadas para a coalizão de direita. Mas uma importante cidade rompeu esta lógica bipartidária e anunciou a chegada do novo: Valparaíso, com a eleição de Jorge Sharp, do Movimento Autonomista – que integra a Frente Ampla, ainda em processo de criação na época.

Valparaíso é o porto mais importante do Chile. Uma cidade histórica, com forte presença da juventude e uma tradição de rebeldia e liberdade artística. Tive a felicidade de conhecer Valpo quando estive no Chile e sentir a latência da mudança, com os murales e pichações por toda a cidade do movimento No+AFP. Trata-se de uma forte plataforma da sociedade civil contra o modelo de aposentadoria no Chile, que é essencialmente privado e controlado por grandes multinacionais através das Administradoras de Fundos de Pensões (AFP).

A eleição de Jorge Sharp abriu uma fenda no establishment chileno, aprofundada agora com o poderoso resultado eleitoral de Beatriz Sánchez.

A Frente Ampla é filha legítima dos protestos estudantis

A origem da Frente Ampla é um exemplo de que os ventos da mudança vieram de longe, com a onda de revolta estudantil que tomou conta do Chile em 2011 e se materializou na formação de diversas organizações consequentes com a causa de uma educação 100% pública.

A educação é uma ferida aberta na sociedade chilena, onde o ensino superior público não é gratuito. Os estudantes precisam se endividar para ingressar na universidade, obtendo créditos com os bancos, que geram passivos impagáveis.

Não é por acaso que este foi um dos principais temas da candidatura de Beatriz Sánchez. Sua consigna foi acertada e tocou na raiz do problema: “Sem mais endividados por estudar – Responsabilidade do Estado e perdão da dívida educacional”.

O programa da Frente Ampla para a educação estabelece o fim das dívidas aos estudantes e suas famílias. O Chile foi, durante a ditadura de Pinochet, um laboratório de experiências neoliberais. Os Chicago Boys viram na ausência de democracia a possibilidade perfeita de implementar as medidas antipovo, e a privatização da educação pública foi uma delas. Hoje existem 858 mil pessoas endividadas no Chile por estudar. O valor total da dívida estudantil no país chega a R$ 27 bilhões.

Beatriz Sánchez assumiu uma plataforma radical de enfrentamento aos bancos que lucram com este sistema. Comprometeu-se a proibir a venda de crédito educativo já nos primeiros seis meses de governo e fazer com que o Estado assuma a dívida com os bancos, livrando as famílias deste encargo e estipulando com o sistema financeiro as condições e valores para o pagamento.

Além disso, o programa da Frente Ampla prevê a construção de uma educação 100% pública e gratuita no Chile. Nenhum destes pontos foi proposto pela centro-esquerda de Alejandro Guillier. Esta e muitas outras diferenças programáticas tornam praticamente impossível o apoio de La Bea, como é conhecida, à candidatura governista, que tem muito interesse em seus mais de um milhão de eleitores.

Aposentadorias públicas e imposto sobre grandes fortunas

Outros dois pontos separam radicalmente os programas apresentados por Beatriz Sánchez e Alejandro Guillier na eleição presidencial chilena: a questão previdenciária e a justiça tributária. A Frente Ampla defendeu a plataforma do movimento No+AFP e uma profunda revolução na estrutura tributária do país, com os ricos pagando mais impostos, enquanto o governismo prometeu apenas maior regulação sobre os fundos privados de pensão e continuidade das mudanças tributárias já aprovadas por Michelle Bachelet.

Os dados sobre as aposentadorias no Chile são assustadores. Enquanto 79% das pensões pagas pelos fundos privados estão abaixo do salário mínimo, 44% estão abaixo até mesmo da linha da pobreza. E as mulheres recebem aposentadorias 37% menores que os homens.

A consigna da Frente Ampla escancara este sistema de achaque aos trabalhadores: “As economias de 99% do povo são usadas para multiplicar os lucros do 1% mais rico”. Por isso Beatriz Sánchez defendeu uma aposentadoria mínima equivalente a 100% do salário mínimo, a diminuição da cota cobrada dos empregados de 13% para 9% e o aumento da contribuição patronal de 5% para 9%, além da retirada das AFP do sistema – transformando essa invenção capitalista em uma opção de aposentadoria privada complementar a quem quiser ingressar nela.

Vale lembrar que as AFP foram criadas na ditadura, sob a benção de José Piñera, que foi ministro do Trabalho de Pinochet e é irmão de Sebastián Piñera.

A linha do programa econômico da Frente Ampla também expressou uma plataforma combativa em defesa da maioria do povo, apostando na desconcentração de renda e na justiça tributária. O Chile é o país da América Latina onde os bilionários possuem uma riqueza mais alta em relação ao PIB, chegando a 25% de todo o esforço produtivo do país.

Para corrigir essas distorções e arrecadar recursos para consolidar uma saúde e uma educação 100% públicas, Beatriz Sánchez defendeu uma alíquota anual de 2% para fortunas acima de US$ 5 milhões e de 50% para quem tiver uma renda anual acima de 150 milhões de pesos chilenos.

Democracia real: uma dimensão esquecida pela velha esquerda

Outro eixo central da campanha de Beatriz Sánchez à presidência do Chile foi a radicalização da democracia, com a construção de uma democracia real no país. Este aspecto tem sido amplamente ignorado pela velha esquerda onde quer que ela governe.

Os chilenos ainda convivem com a Constituição de 1980, oriunda da ditadura. A Frente Ampla propôs uma Assembleia Constituinte para refundar as instituições no país sob novas bases, com democracia real e participação popular.

No Chile as regiões sequer possuem governadores eleitos pelo povo. A autonomia regional é praticamente nula, não existe a ideia de federação. E as subdivisões foram criadas de forma burocrática e autoritária pela ditadura – tanto que no início não possuíam nem nomes, apenas números: região I, região II e assim por diante.

Beatriz Sánchez defendeu a criação de um Estado Plurinacional, respeitando a autonomia das comunidades tradicionais, como o povo Mapuche, e o redesenho completo das regiões, com eleição direta dos governadores e autonomia econômica e tributária.

A Frente Ampla que o Brasil precisa

Muito se fala na construção de uma Frente Ampla no Brasil para as eleições de 2018. Mas sobre que bases ela seria construída?

A Frente Ampla chilena é composta pela esquerda dissidente do regime. A esquerda que não aceita o jogo da conciliação com o rentismo e o sistema político apodrecido. Uma esquerda que ousou radicalizar seu programa e não relegou a luta contra a corrupção a um segundo plano. Uma esquerda que não compactuou com uma social-democracia dormente e incapaz de levar adiante um programa mínimo de mudanças estruturais. Uma esquerda que não envelheceu, formada e liderada pelos melhores quadros das revoltas estudantis de 2011.

O Brasil tem condições de construir uma Frente Ampla com este perfil, formada por atores sociais e políticos que não compactuaram com a conciliação de classes do lulismo e que entendem a centralidade da denúncia de um sistema corrupto, com relações espúrias entre o grande empresariado nacional e a casta política?

É com este signo que deve ser construída uma Frente Ampla no Brasil. Não há espaço para alianças regionais com o PMDB e os demais partidos do sistema, como vem defendendo o lulismo. Não foi através do fisiologismo e da moderação programática que a Frente Ampla chilena conquistou 20% dos votos e se consolidou como terceira força política do país.

Uma Frente Ampla para promover uma espécie de continuísmo do passado não serve ao Brasil. É preciso construir algo novo, que apresente uma alternativa de transformações reais ao país, rompendo com o sistema corrupto responsável pela crise, pela degradação dos serviços públicos, pelo desemprego e pelas condições precárias de vida da maioria da população.

O Chile mostrou o caminho. Antes dele, o Peru, com a Frente Ampla de Verónika Mendoza, também havia apontado uma alternativa. Nenhuma destas plataformas venceu, é verdade. Mas pautaram o debate político, tensionaram a social-democracia e são verdadeiras fortalezas na luta contra os projetos antipovo dos que venceram. O futuro pertence à esquerda insubmissa!

(*) Samir Oliveira é jornalista e militante da Setorial LGBT do PSOL/RS.


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