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12 de fevereiro de 2021
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10:19

Um discurso precário

Por
Sul 21
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Um discurso precário
Um discurso precário
Foto: Daniel Rosa Dos Santos

Ronald Augusto (*)

Se é verdade, como escreve Maiakóvski, que a poesia é toda uma viagem ao desconhecido, podemos concluir, então, que quando pensamos nas dificuldades relativas ao exercício da poesia o desafio maior consiste no exercício mesmo desse gênero. Já os supostos percalços mundanos envolvidos nesta escolha – e no meu caso, acho que nem posso falar em termos de “escolha”, pois desde o início já sabia que jamais seria um prosador -, isto é, a audiência restrita, o nenhum interesse por parte das grandes editoras em publicar poesia, a quase verdade sobre a impossibilidade de remunerar o trabalho do poeta, a resistência à informação nova, enfim, todos esses contratempos estão mais relacionados ao processo de equilíbrio/desequilíbrio de poder no seio do sistema literário. São falsos desafios.

Traduzindo a ideia do poeta russo em termos mallarmaicos, o que interessa é esse mergulho solitário e ao mesmo tempo solidário (porque não se pode dar as costas ao legado da tradição nem às condições de produção do agora-agora) no branco, no vazio insondável do papel, ou da tela luminosa, em busca de alguma espécie de linguagem.

Quando se considera a poesia como “beleza difícil” tudo muda de figura. Isto é, não são dificuldades exteriores que “se impõem” ao fazer poético, mas, antes, a poesia, compreendida aqui como design de linguagem, é que pressupõe certas dificuldades. A poesia incita o leitor a um grau maior de exigência. Não sei se meu percurso textual representa um drible nessas dificuldades. Na verdade, prefiro ir mais margeando do que tentar rivalizar frontalmente com a burrice ou conquistar um lugar de consagração dentro do ambiente literário. Minha estratégia é a de usar um mínimo de esforço visando um máximo de resultado. Aprendi isso com a poesia: um mínimo de retórica para um máximo de significação. Claro que por detrás deste mínimo há um trabalho absurdo, mas o leitor não precisa ser lembrado disso. Em resumo: não me ocupo com as dificuldades impostas pela mediania do embate cultural, escrevo minha poesia sem esperar demais da recepção. Quando há interessados estou disposto a dialogar.

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Tal como o poeta, o prosador ou o dramaturgo, o crítico é, antes de tudo, um leitor. A crítica que ele é capaz de produzir sobre determinado objeto artístico, não é senão uma leitura. Existe uma vontade de interpretação correlata a uma vontade de representação. O fazer, o saber e o julgar implicados na atividade crítica, devem ser colocados numa perspectiva provisória. Um bom poema não admite solução. A crítica não tem que resolver nada.

Acho que o clichê do poema como “beleza inútil” serve como estratégia de problematizando da força ou do poder de transformação da arte em geral e, em especial, da poesia. E isso me parece bom porque por meio dessa suspeição irônica nos tornamos mais aptos para compreender a arte e a poesia numa dimensão menos grandiloquente ou menos esperançosa em relação ao seu poder de fogo. A questão da inutilidade da poesia, embora seja um dos assuntos prediletos de uma linhagem de poetas-críticos que vem desde o alto modernismo e chega até a poesia pós-utópica do agora-agora, não é um problema que diga respeito apenas às preocupações estéticas desses sujeitos. No passado, Platão, por exemplo, dedicou alguma atenção e energia ao tema. O filósofo percebeu que, na arte da poesia, a função referencial da linguagem centrada no receptor era praticamente anulada ou, no mínimo, colocada em plano secundário. De acordo com a poética clássica, a poesia corresponde ao belo imperfeito, isto é, o que predomina neste gênero é a ficção e a fantasia, portanto não faz sentido que se lhe exija qualquer veleidade pedagógica ou moralizante. Platão tem em mira o belo perfeito, a obra poética em que se realiza a união do útil ao agradável. Drummond chega à mesma conclusão, mas a formula de outro modo, quando diz, por exemplo, que a poesia é uma linguagem de poucos instantes. Cada poema inaugura e exaure a chance de uma linguagem. Já a prosa é a linguagem de todos os instantes, um sistema de signos em torno do qual estabelecemos convenções que possibilitam o funcionamento da vida cotidiana. A poesia não põe as coisas nos eixos. Faz vacilar as bases do edifício da República.

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Registro pessoal. Eu não tento alcançar um ponto de equilíbrio nas tensões com que trabalho minha poesia. Procuro assimetrias, desvios que gerem precipitações, experimentos. Sou um leitor fervoroso da tradição, ou melhor, tento ser um intérprete do legado com vistas a presentificar aqui traços de uma tradição em movimento. Acredito que uma obra poética revolucionária é, essencialmente, a potencialização ou a transfiguração de um momento especial da tradição; a obra inventiva não é fruto do acaso, embora não se deva desprezá-lo. Penso que em minha poesia, tal como na de outros poetas, no que se refere à tradição, não há sinais nem de angústia nem de orgulho da influência, mas sim de uma vocação para a tradução/traição das influências.

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Não é muito fácil colocar a poesia atual dentro de uma mirada cujo enquadramento seja suficientemente amplo a ponto de permitir ao observador o vislumbre de uma figura que faça sentido em seu conjunto. Nos últimos anos tenho pensado e escrito bastante a respeito da produção poética recente. Um exemplo é “Lugares-comuns da poesia contemporânea”, artigo que escrevi em 2006 analisando a linguagem de boa parcela da poesia dos meus pares, mas tendo por objeto um determinado livro de poemas publicado no mesmo período. Uma crítica metonímica: vi as virtudes e os vícios daquela poesia (que ainda persiste em nossos dias) encapsulados no volume do poeta. Assim, posso resumir as figuras a que cheguei na tentativa de descrever a verdade cambiante dessa produção: (1) grosso modo, a competência poética define a nossa práxis, nos tornamos excelentes diluidores dos modelos consagrados; (2) o elogio de uma pluralidade hipocritamente tolerante está na base desse ecletismo poeticamente correto; (3) cada vez mais, os poetas parecem necessitar das credenciais da academia e do mercado editorial; (4) uma retomada algo virtuosística de um vanguardismo como mise-en-scène, agora, mais um recurso de estilo constante do repertório oferecido por uma tradição bem recente; por fim (5), nos últimos anos certos compromissos políticos (questões raciais e de gênero, por exemplo) diluídos vagamente na noção de ativismo têm sido articulados em muitas vozes poéticas, isto é, a função social da poesia volta a ser fortemente encarecida.

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A chave léxica que um poeta usa para abrir a “caixa-preta” de seus poemas e livros é pessoal e intransferível. O poeta deve respeitar muito a liberdade de interpretação do leitor. Na verdade, o leitor se comporta como um co-autor. O leitor, a partir do seu desejo de linguagem, forja a sua própria chave léxica, recria o poema investindo sua parcela de pensamento ou de sentimento. A interpretação do poeta não é a oficial; para todos os efeitos ela é, inclusive, irrelevante, isto é, não é melhor nem pior do que qualquer outra. Sobre essa questão, gosto de um pensamento do Wittgenstein: “(…) não existe uma “última” explicação. É o mesmo que dizer: nesta rua não existe uma última casa; pode-se sempre construir uma nova.” Retorno mais uma vez ao verso de Maiakóvski, o leitor deve experimentar essa viagem ao (seu) desconhecido que é a poesia.

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Os espaços tradicionais (jornais, revistas, TV, rádio, etc) persistem como reféns da mediocridade, insistindo numa recusa frontal a tudo que se aproxime de um lance de pensamento. A internet, por outro lado, começa a dar sinais de vida inteligente e às vezes chega mesmo a nos enganar. Ou seja, a rede mundial/virtual finge ser o lugar por excelência de um saber/conhecimento que muitos de nós esperamos que nos leve a circunstâncias mais favoráveis à diversidade. Na verdade, ainda é um meio se estabelecendo. Tem muito dos defeitos e das qualidades dos outros meios que um dia talvez venha a substituir. Assim, à diferença dos veículos consagrados (que tentaram contar a história desses dois últimos séculos), a internet parece encarnar a imagem desse nosso presente sem margens, presunçosamente aparentado a uma espécie de “pós-tudo”. E a poesia contemporânea se sente bastante à vontade no interior da fragmentação especular com que esse âmbito virtual representa o agora-agora.

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Ler é mais importante do que escrever. E digo um pouco mais: reler é mais importante do que ler, isto é, no sentido em que reler está relacionado a um tranco de qualidade ou à ideia de leitura criativa. Confesso que depois de Guimarães Rosa nunca mais li romances. Prefiro reler o prosador mineiro ou Machado de Assis, o maior de todos, a ler o romancista da vez elogiado pelos suplementos literários. O que importa é o desejo de linguagem (o leitor de lápis em punho) conjugado com a leitura de prazer (o leitor desobediente). Poesia não tem que ser associada à utilidade, mas sim à fruição. Chovo no molhado, contudo é assim mesmo.

 (*) Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Letras na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) À Ipásia que o espera (2016), O leitor desobediente (2020) e Tornaviagem (2020). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no Sul21.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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