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16 de outubro de 2020
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10:28

Anotações volantes

Por
Sul 21
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Ronald Augusto (*)

Exploração

Artistas extraem mais prazer em aparecer (em ser ubíquos) do que em ganhar dinheiro com seu trabalho. Como dão graciosamente (a quem poderia pagar) o suor do seu rosto.

“Ah, mas a arte salva!”, bradam alguns defendendo inadvertidamente o argumento contra a remuneração do artista, porque se trataria de um tipo de missão. Muito bem, suponhamos que a arte seja capaz de salvar mesmo, pois então, isso me parece uma forte razão para os artistas serem pagos por seu trabalho.

Escrevi uns poucos prefácios e apresentações sem cobrar pelo trabalho, porque eram poetas que respeitava (e respeito). De uns anos para cá mudei a prática. Continuo escrevendo apenas para os poetas que admiro, mas agora cobro deles, pois é trabalho. Para poeta medíocre nada, nem pagando bem.

Reprodução

Luta mais vã

Às vezes acho que a luta antirracista já nasceu derrotada. Essa luta parece ser travada numa bolha. O desemprego atinge negros, majoritariamente. Um genocídio varre do mapa os jovens negros. A pandemia da covid-19 é mais letal na população negra. Negro é o alvo da violenta emoção policial. A justiça é sempre injusta com negros, é tolerante com os supremacistas sem lençol branco. Afinal, onde mesmo está sendo travada a luta antirracista, na representatividade, na televisão, na venda de livros?

Patrono

Saúdo o nome de Jeferson Tenório como patrono da Feira do Livro não pela lógica do “primeiro negro a…”, porque isso se relaciona à regra óbvia da assimétrica partilha de estima do racismo à brasileira (a brancocracia superestimará a fuga à rotina como um trunfo do princípio da tolerância enquanto desde-que, princípio que é constitutivo da brancocracia e seus modos de ser), além do mais, minha impaciência absoluta com a fenomenologia da resignação me impede de festejar todo gesto retardatário.

Saúdo o nome do meu amigo Jeferson como patrono da Feira do Livro não porque “representatividade importa”, inclusive porque o clichê faz silêncio aos limites e aos compromissos constrangedores inerentes a esse lugar de representação.

Saúdo o nome do Jeferson como patrono da Feira do Livro porque é um bom escritor, porque não é um autor com delírio de grandeza (está livre disso por não ser gaúcho).

Saúdo o seu nome como patrono da Feira do Livro porque essa visibilidade chamará atenção de mais leitores para a sua produção. A literatura sai vitoriosa quando leitores se interessam mais por escritores como Jeferson Tenório do que, por exemplo, poetastros como Remerval Cudelume (essa piada do nosso bairrismo).

Por isso saúdo o nome do novo patrono da Feira do Livro: Jeferson Tenório.

Advertência

Jamais, em hipótese nenhuma, emoldure com aspas uma opinião sua postada em rede social mantida por você. É menos errado do que ridículo.

Eu avisei

A ministra da agricultura disse que se houvesse boiadas e boiadas espalhadas no Pantanal não haveria as queimadas. Essa é a essência do governo de Jair Messias Bolsonaro: solucionar um desastre com outro desastre.

O Twitter é o grande tolicionário das redes sociais. A radicalização dessa percepção se materializa em tom dadaísta no mundo de deturpação e fraude onde deambula, menos momesco do que memesco, a persona do Messias. A sociedade e o pensamento brasileiros são reduzidos, aqui, a um compósito trágico em que o ridículo é inseparável do mais renhido reacionarismo.

Esse é um “governo de loucos” (Lula dixit) que se orgulha de sua ignorância e de seu desdém em relação à cultura, à educação e ao pensamento. As formas de enfrentamento determinadas por Bolsonaro, relativamente a esses problemas fundamentais para uma nação que tem alguma veleidade de se destacar nos campos científico e tecnológico, restringem-se ao mais baixo revanchismo punitivo. O governo Bolsonaro entende o pensamento e o debate democrático de ideias como ações perversas de ideologias “comunistas” que devem ser varridas do mapa a qualquer custo. Portanto, os campos da cultura e da educação são vistos como inimigos do atual governo porque podem favorecer um pensamento não tutelado e crítico.

Diante de um quadro tão catastrófico, o papel não só da literatura, mas de qualquer gesto reflexivo ou inventivo, é o de simplesmente seguir em frente em sua experiência criativa. Escrever, atuar, cantar, ensinar, pensar, dançar, encontrar amigos para trocar ideias etc, levar adiante esses desejos – mesmo que tudo aconteça sem uma motivação necessariamente revolucionária –, o simples seguir em frente, em vista do cenário tão reacionário e violento, é algo que já não diz mais respeito aos fracos. Quem segue em frente, hoje, é antes de tudo um forte.

(*) Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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