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21 de agosto de 2020
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10:32

Sou um poeta tolerável? Sou um escritor promissor?

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Sul 21
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Sou um poeta tolerável? Sou um escritor promissor?
Sou um poeta tolerável? Sou um escritor promissor?
Arquivo pessoal

Ronald Augusto (*)

A motivação primeira para quem se dispõe a fazer um curso ou oficina de criação textual é muito simples: o intuito é o de averiguar a real qualidade dos escritos que, talvez, há muito tempo, essa pessoa ou nosso iniciante venha realizando em segredo, e com certa vergonha, como se defecara, para lembrar a dura metáfora usada por João Cabral de Melo Neto na tentativa de representar o constrangimento implicado no ato de escrever.

Esse ímpeto de reconhecimento é mais poderoso do que, por exemplo, ampliar os conhecimentos sobre a arte da poesia ou da prosa. Para os mais ansiosos há oficinas e cursos de escrita criativa que prometem aos inscritos alcançar em poucas semanas a condição de super-escritor. Basta que comprem seus manuais e sigam à risca a mentoria do consagrado escritor-coach que tem uma dezena de obras publicadas, mas que, pelo jeito, passaram em branco, pois ninguém jamais ouviu qualquer coisa a respeito delas. Enfim, a maioria dos candidatos a escritor só quer saber se tem jeito para a coisa. Se os seus escritos prestam ou não. Feliz ou infelizmente, não há resposta cabal para essa angústia. E há alguns motivos para isso.

Primeiro porque, como afirma W. H. Auden, o percurso textual do verdadeiro artista denuncia um progressivo senso de dúvida. Isto é, quanto mais experiência ele adquire mais incerto o nosso herói se sente com relação à qualidade e ao alcance do seu trabalho. Mesmo a palavra do “ministrante” (expressão terrível) do curso ou da oficina, não será inteiramente de confiança. Muitos autores consagrados falharam na avaliação de sujeitos que iniciavam suas carreiras literárias. Em muitos casos a imersão no acervo da tradição e a rivalidade virtuosa que se estabelece entre os iguais potencializam o sentimento de incerteza em relação a nós mesmos e ao alheio.

E, segundo, porque a prerrogativa de tal aferição, isto é, definir se há qualidade literária ou não nos escritos do interessado, fica a cargo da recepção (o sistema literário, no nosso caso) e do tempo. A recepção às vezes pode ser perversa e oscila ao sabor do vento. Há uma dialética um tanto tensa entre os interesses dos grupos envolvidos, as contingências históricas e o transcurso mais demorado do tempo onde as coisas, ainda bem, se decantam.

Dois exemplos relativos à difícil avaliação da qualidade de um trabalho artístico: Kafka e Arthur Bispo do Rosário. O primeiro, Kafka, pediu para que depois de morto seus papéis fossem queimados. Não foi atendido. Arthur Bispo do Rosário, o artista brasileiro, um indigente negro acolhido num manicômio, é guindado, contra a sua vontade, à categoria de criador de vanguarda; Bispo do Rosário dizia que seus mantos não eram arte, mas coisas sagradas cuja realização tinha a ver com uma missão divina. Ninguém lhe deu a mínima. E muitos lucraram com as obras do sacerdote alienado. Quem estava com a razão?

Contudo, quanto mais largo se torna o acervo de leituras, quanto mais profundo ou desinteressado é o mergulho na diversidade das formas e tradições/antitradições poéticas, mais capaz parece se considerar o candidato a poeta frente ao desafio de distinguir um bom poema de outro malogrado. Neste caso vale a máxima irônica de Hans Magnus Enzensberger (grande poeta e crítico cultural) segunda a qual você não precisa beber o conteúdo inteiro de um barril para dizer se ele está cheio de vinho ou de vinagre.

(*) Ronald Augusto é poeta, letrista e crítico de poesia. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no Sul21.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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