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17 de julho de 2020
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11:00

As duas águas de ‘Água de meninos’

Por
Sul 21
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As duas águas de ‘Água de meninos’
As duas águas de ‘Água de meninos’

Ronald Augusto (*)

Ao contrário do que aconteceu com os de minha geração, muitos escritores e poetas negros mais jovens, hoje, começam sua formação tendo já como tradição um grande número de obras de artistas que se assumem negros, a partir de percursos textuais irredutíveis, de modo mais ou menos alusivo em seus textos. Isto é, esses jovens escritores trabalham a partir de uma literatura negra já constituída, mas sem deixar de se apresentar como um acervo também em processo. Essa conquista precisa ser festejada, pois se trata mesmo de um lugar que devíamos alcançar e alcançamos. A partir desse ponto não há mais retorno.

Divulgação

É dentro desse quadro que emerge a poética de Duan Kissonde. Em Água de meninos as referências a marcos de uma antitradição (Beatriz Nascimento, Oliveira Silveira, p. ex.) não ganham espaço na fatura dos poemas para fazer as vezes de credenciais ou de capitulação à intertextualidade autocentrada exercida em atenção à convenção de estilo exigida pela contemporaneidade. Estamos longe disso. Menos do que a mania de citação, o que os poemas de Duan oferecem ao leitor – ao menos na primeira parte do livro –, tem relação com os preceitos atinentes ao território da encruza. Isto é, o poeta evoca os seus maiorais pedindo permissão para que seus caminhos se abram e que eles lhe sejam propícios. Caminhos que giram em torno ao cruzamento das linguagens; que se vêem tragados para o interior do altar de Exu.

Sim! Eu sacralizo animais para os meus rituais. E daí?
Assim como Oliveira Silveira
Eu também bato tamborim com meu sexo
E daí?
Sou preto.
Cortina da noite, universo complexo

Essa complexidade que Duan Kissonde reivindica para o seu (nosso) ser negro vai se materializando, como uma espécie de operação tradutória, na superfície e no interior da signância poética de Água de meninos na medida em que os poemas se vão sucedendo sob os olhos do leitor e da leitora. A cada folhear de página, o poema como manifesto, como punho cerrado, é substituído por processos inventivos com a palavra. E sem abdicar de uma “Poesia pantera Negra de pura beleza e pele preta”, Duan se aproxima dessa poesia transnegressora vislumbrada por Arnaldo Xavier, onde o que está em causa é a conquista do direito à invenção para a produção dos artistas negros, porém não em detrimento do texto contundente que pretende responder ao horror do real.

A divisa da transnegressão subjaz à obra Água de meninos. E, mais ou menos, a partir da metade do conjunto de poemas essa faceta fica mais evidente. O poeta provoca o leitor a perceber que a autonomia estética e a radicalidade expressiva não excluem a denúncia nem a problematização do racismo enquanto virtuais perspectivas literárias. Como indício de seu apetite radical, apresento um exemplo desse Duan transnegressor que, em vista da informação nova, dessacraliza e expropria, a um só tempo, tanto um poema do clássico Drummond, quanto o pensamento do filósofo Hegel que uma vez se embrenhou em uma dialética do senhor e do escravo:

ÁPORO DIASPÓRICO

Um preto cava
cava sem alarme
perfurando a terra preta
sem achar escape.

Que fazer exausto
em país bloqueado?
Enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(Oh razão e mistério)
o preto se desata:
Em verde sozinha
anti-hegeliana
uma favela forma-se.

Por fim, faço questão de conferir a essa resenha à obra Água de Meninos uma dimensão pessoal e algo sentimental. Explico, Duan Kissonde e eu nos encontramos várias vezes para ler e comentar os originais do livro que agora o leitor e a leitora têm em mãos. Eu conhecia apenas uns poucos poemas do Duan – e, naturalmente, os apreciava –, porém quando comecei a ler e comentar verso a verso, poema a poema da reunião que viria a se tornar o livro, fiquei a imaginar o seguinte: o que Oliveira Silveira teria achado desses poemas e experimentos de linguagem?

Não tenho a menor dúvida de que – pelos interesses poéticos e políticos, pelas leituras que moviam Oliveira, e pelo o que temos à disposição de suas obras –, o grande poeta de Roteiro dos tantãs (1981) ficaria deveras contente com a estreia de Duan Kissonde na intrincada selva da poesia brasileira. Com efeito, ambos caminham e abrem sendas para uma zona de confluência, a saber, o investimento estético-ético no canto primoroso e no desacato ao racismo.

(*) Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21: http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ronald-augusto/

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