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26 de junho de 2020
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10:48

Poesia ruim, Copa de 70 e arrependidos

Por
Sul 21
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Poesia ruim, Copa de 70 e arrependidos
Poesia ruim, Copa de 70 e arrependidos
Reprodução/Facebook

Ronald Augusto (*)

Como vou saber se um poema é bom ou ruim? Você não precisa ingerir todo o conteúdo de um barril para dizer se ele está cheio de vinho ou de vinagre.

Por que, por um lado, somos tão severos e críticos com opiniões infundadas, com terraplanistas, com bolsonaristas orgulhosos da própria estupidez e, por outro lado, toleramos e passamos pano para poetas medíocres e poemas ruins, chegando, inclusive, a curtir essas manifestações?

A indiferença à verdade e ao conhecimento, seja relativamente à vida vivida, seja ao pensamento, deve ser tão criticada quanto a leniência (irrigada pelas redes sociais) com que tratamos o aparecimento de tanta poesia avinagrada.

O pacto com as ideias falsas e a cumplicidade com as práticas poéticas de péssima qualidade deveriam acabar no mesmo saco.

*

Num surto de saudade, dias atrás assisti na íntegra a final da copa do mundo de 1970. Tirante os gols e alguns momentos reprisados à exaustão, aqui é acolá, acho que foi a segunda vez que vi todo o jogo. Eu tinha 8 ou 9 anos quando o assisti pela primeira vez. Morava em Niterói, Rio de Janeiro. Vila militar da Fortaleza de Santa Cruz. Coisas que percebi assistindo a partida histórica, segue uma enumeração bem incompleta: (1) o time da Itália era muito perigoso; não era uma galinha morta; bons contra-ataques; (2) os jogadores de defesa da seleção canarinho eram muito bons; esquecemos deles facilmente, Everaldo, por exemplo, jogava com eficiência e me pareceu um belo jogador; (3) nas faltas com barreira o juiz não contava os passos para montá-la, os jogadores obedeciam a seus gestos e paravam onde ele indicava que já estava bom, depois não mais se moviam. Impressionante, hoje isso é impossível; (4) não havia cera de nenhum dos jogadores, levavam um sarrafo, mas já se levantavam, a bola rolava o tempo todo; (5) o aproveitamento do rei foi de 100 %, muito marcado, quase não tocou na bola, porém participou diretamente de 3 dos 4 gols do time: em um deles marcou e nos outros dois fez a assistência, o passe final.

Os resumos dão a impressão de que Pelé levou o time. Não foi bem assim, mas é maravilhoso ver quando um craque tem consciência de suas capacidades e sente e se coloca no lugar certo para decidir um jogo. Jordan, no basquete, fazia isso, esse outro Pelé. Quem levou o time, em termos de visão de conjunto, em minha humilde opinião, foi o Gerson; (6) Rivelino deitou e rolou (no segundo tempo), seus dribles tiraram os italianos do sério. Chutou umas três bolas lá na arquibancada superior. Sabia dar chutão sem direção, acontece que não é mole pegar de trivela; (7) Gerson fez o gol mais bonito do jogo. Dois toques rápidos desguiando dos marcadores e uma porrada na bola. A bola entrou rasante no canto esquerdo do gol, o goleiro beijou o gramado. Já era.

Outras considerações sobre a final de setenta. Sobre o cansaço da equipe italiana: vi um depoimento do Gerson dizendo que a Itália estava cansada em função dos jogos anteriores e que sabia que o time não iria ter gás no segundo tempo, não deu outra. O segundo gol do Brasil afetou o ânimo dos italianos, e o brasileiros pressionaram muito. A Itália ficou nervosa. Daí, deu pra bola.

Sobre não ter mencionado o desempenho do Furacão Jairzinho e outros. Pois é, eu escrevi mais acima que minha enumeração era incompleta e, portanto, injusta com outros jogadores. É que meu interesse foi o jogo da final. Sim, Jairzinho jogou bem e inclusive marcou um gol, meio que sem querer. Mas vamos lá, Tostão jogou um bolão, Clodoaldo frio e elegante, Félix, com aquele porte magrinho e quase raquítico, fez a melhor defesa do jogo nos primeiros minutos, salvou o Brasil de sair perdendo. Uma virada seria lindo.

Sobre o gol mais bonito da partida. Defendo o gol do Gerson porque reúne rapidez na leitura da jogada e o sentido da precisão; Gerson corrigiu um lance em que o Jairzinho foi barrado pela defesa italiana: a bola respinga para o Canhota, ele busca o espaço paro chute com dois toques curtos, curtos o suficiente para entortar os zagueiros e fim de papo. Foi para abraço. O gol do Carlos Alberto, concordo, é uma pintura. É todo em câmera lenta, Pelé parece levar uma eternidade para ajeitar o corpo e dar aquele toque lindo para o chute do capitão que é uma bomba aguda e que faz o tempo voltar a correr do jeito de sempre. Um gol tão calculado e demorado – demora de que carece o gol veloz do Gerson – que parece ter sido combinado com o adversário.

Uma derradeira questão sobre a final da copa de 1970 que diz respeito à compleição física dos jogadores. Revendo a partida dá para notar que, no geral, todos eles (considerando, por contraste, as condições da preparação física de nossos dias) todos eles aparentam ter corpos de pessoas normais. Parece que saíram do banco, da repartição pública ou da fábrica e foram jogar bola. O Gerson, por exemplo, tem cara e calvície de farmacêutico. Por outro lado, os jogadores negros, quase todos, já apresentam corpos mais estruturados, no entanto, essa percepção não me deixa mais alegre, no sentido em que seria um fato de que nós negros devêssemos nos gabar; não se trata disso. A constatação talvez indique que o cotidiano (a realidade) dos jogadores negros tenha exigido ou tolerado deles apenas as capacidades e os desempenhos ligados à força e à explosão físicas. O peso do racismo nos ombros, nos músculos negros. Um condicionamento físico reativo.

*

Não posso acolher quem se diz arrependido de ter votado no Bolsonaro. Não é justo propor que se organize uma comissão de pessoas ponderadas cuja missão seria dirigir-se até a casa de, por exemplo, Lya Luft e oferecer-lhe o ombro amigo nessa hora em que manifesta um teatral arrependimento. A romancista afirmou que não esperava que o governo do seu candidato se transformasse numa “ditadura branca”.

É injusto com quem, desde sempre, está lutando (e dando a cara a tapa) contra esse governo protofascista, sentir peninha dos arrependidos e retardatários que agora são objeto de críticas e insultos – plenamente justificados, aliás – da parte de quem conseguiu vislumbrar o que significaria votar em tal projeto obscurantista.

A questão não é que esses arrependidos tenham apenas votado num candidato e agora, diante de certos fatos, comecem a rever o que fizeram, afinal, quem não se engana? E coisa e tal. Mas me diga uma coisa, o que há por detrás desse “eu apenas votei errado e quero outra chance”?

Respondo. Os arrependidos de ocasião sabiam que à época votavam em um racista e não deram a mínima; os arrependidos sabiam que votavam em um machista renhido e não deram a mínima; os arrependidos sabiam que votavam em um sujeito que defendia a tortura e o estupro e não deram a mínima; os arrependidos sabiam que votavam em um homofóbico e não deram a mínima; os arrependidos sabiam que votavam em um político que passou quase 30 anos de sua vida pública na Câmara dos Deputados sem propor nada de relevante e não deram a mínima; os arrependidos sabiam que votavam em um sujeito que defendia o golpe de 64 e não deram a mínima.

Esses arrependidos de ocasião são baita problema. Só que não são um problema que me diga respeito. Eles sabem que arrependimento não mata ninguém. Vocês querem dormir com os inimigos? Então os acolham e façam bom proveito.

(*) Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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