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12 de junho de 2020
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10:37

As pessoas brancas e o antirracismo planetário

Por
Sul 21
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As pessoas brancas e o antirracismo planetário
As pessoas brancas e o antirracismo planetário
Fidel Castro e Malcolm X em um encontro no Harlem, em 1960 (Foto de Carl Nesfield)

Ronald Augusto (*)

Chamem negros para que falem sobre negridão. E brancos para engendrarem enciclopédias onde haverá, inclusive, um verbete sobre o negro.

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Quando você acha que conseguiu o seu emprego apenas em razão dos seus dotes intelectuais e porque você ralou pra caralho, não se iluda, isso aconteceu em grande medida porque você é branco, pois a tarefa ficou menos árdua, uma vez que outros candidatos não brancos e tão qualificados quanto você, e que também ralaram pra caralho, acabaram sendo preteridos pela cor da pele e, portanto, fizeram de você um vencedor.

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Quando a polícia resolve não escolher a sua pessoa para dar um atraque ou quando isso inexplicavelmente acontece e você sai ileso, não se iluda, não é porque prevaleceu a máxima segundo a qual “quem não deve não teme”, nem porque você sabe argumentar e é bem articulado e passa uma energia positiva; é porque você é branco.

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Quando você, poeta puro, escreve seus versinhos medíocres e os publica e, em seguida, seu poema é comulado de curtidas e elogios, não se iluda, você não é um novo Drummond palavroso, nem uma nova sublime Cecília; a coisa acontece desse jeito porque você é branco e porque a maioria dos integrantes do sistema literário são brancos, editores, livreiros, curadores. Ou seja, você pensa fazer boa poesia, porém você apenas faz funcionar a máquina autocentrada da literatura branca brasileira.

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Quando você levanta a mão e pede a palavra no meio de um debate sobre, por exemplo, racismo, e defende que o ressentimento não leva a lugar nenhum, que entende nossa revolta, mas que em fim de contas todos somos iguais e que não entende o motivo de ser olhado com desconfiança por pessoas não brancas sempre que tenta se solidarizar com elas; quando você pensa e age assim, não se iluda, a resistência vinda da parte dessa gente não é porque você está pensando fora da caixa ou porque você é uma criatura que consegue enxergar o outro melhor do que ninguém e coisa e tal; não se iluda, isso acontece porque você não percebe o privilégio branco que informa a sua visão de mundo e que justifica seus métodos de auto-engano. O privilégio branco que faz com que você não ouça e nunca fique quieto, mas apenas fale, fale e fale de tal modo que a inconsciência que você tem de si próprio, como pessoa branca desrracializada, se torne tão opressora quanto aparentemente sem consequências para a continuação do racismo.

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Pois, sim, acredito que seja fundamental o compromisso de gente branca com a causa antirracista. É óbvio que ajuda ter menos gente branca contra nós. Entretanto, confesso que, com base no caso brasileiro, na experiência brasileira, eu precisaria viver pelo menos uns quinhentos anos para começar a confiar em algum gesto desinteressado vindo da parte dos não negros.

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Onde, efetivamente, vidas negras importam? Brancos brasileiros estão sempre dispostos a sair em defesa de negros estadunidenses; acham sua revolta, mais do que compreensível, justíssima. Então, que eles queimem mesmo tudo, afinal, lá existe racismo de verdade.

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A esquerda canônica e/ou tradicional deve estar roendo as unhas com toda essa onda antirracista planetária (óbvio que não descarto os oportunismos implicados, a efemeridade dos compromissos não negros etc). Mas, em certa medida, é um gesto identitário de capoeira que os movimentos negros aplicaram de forma bastante oportuna na pauta supostamente progressista. As manifestações parecem indicar a possibilidade de um outro sujeito, de um outro protagonista a atrair a empatia das gentes.

Afinal, a mobilização antirracista dos movimentos negros afirma que sua luta é também a luta pelos direitos, pela justiça e pelo respeito que todos merecem. O temor das esquerdas é de que esse movimento antirracista mundial, capitaneado pelos negros, acabe trazendo à tona o privilégio branco sobre o qual se assentam elas, convencional e soberanamente, porque neste quesito, isto é, o racismo, as esquerdas seguem de braços dados com o centro e a direita.

(*) Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21: http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ronald-augusto/

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