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15 de maio de 2020
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10:39

Parágrafos avulsos, teses soltas

Por
Sul 21
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Parágrafos avulsos, teses soltas
Parágrafos avulsos, teses soltas

Ronald Augusto (*)

O escritor-crítico, ou o escritor que dá ouvidos ao seu “censor interno”, sabe que possui um conhecimento limitado, e por isso mesmo sua perspicácia o faz falar de “florestas” e “folhas”, mas o impede de aventurar-se pelo assunto “árvores”. Os escritos críticos dos poetas talvez devam ser lidos como experimentos poéticos e literários de segundo grau, derivações, ficções de cânones precários. Entretanto, isto não quer dizer que seus resultados não precisem ser levados a sério, pelo contrário: apenas que as reflexões promovidas por esses escritores e poetas são desenvolvidas “com vistas a uma ação: sua própria escritura, a dos escritores que trabalham naquele momento ou que trabalharão num futuro próximo”. Quando o poeta resolve escrever crítica, prefácios, ensaios, etc., ele não tem a pretensão de socorrer o leitor – esse é o objetivo da crítica literária institucional, jornalística ou acadêmica.

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Caligrama de Ronald Augusto

No solo árido do continente do Rio Grande, impermeável ao enraizamento da insolência experimental, indiferente ao que se convencionou chamar de “crise do verso”, foi quase impossível cultivar o novo, ou se preferirem, pelo menos o discordante. Trata-se de uma terra estéril onde a palavra – a clareira do Ser, segundo Armindo Trevisan – e o discursivo persistem firmes na sustentação dos modelos consagrados, dando largas à magia verbal e ao mistério arrebatador das metáforas. Débil música. Numa tentativa de aproximação a essa poesia que, em tal solo, apenas ela, efetivamente teve condições para se desenvolver, pode-se dizer que ainda hoje hesita entre um modernismo tardio incorporado meio a contragosto e a chamada geração de 45 – reação de corte rilkeano ao viés mais radical da poesia de 22. Contra o poema enquanto experimento de linguagem e o poema-piada, a angústia da seriedade nos limites do pampa e de sua fria estética.

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A afirmação segundo a qual a literatura se esgotou ou se resolve, hoje, nessa trama de reconhecimentos recíprocos do facebook, me parece uma generalização indevida; trata-se de afirmação recorrente (o genérico da conhecida aposta em um quadro de falência de algo) que agora dá as caras mais uma vez e, como de hábito, costumizada aqui e ali. Felizmente, a literatura é coisa muito mais complexa. Sou da opinião, inclusive, de que ela não se confunde nem com o mercado editorial, nem com as redes sociais.

Podemos estabelecer relações entre essas realidades, podemos até mesmo sucumbir circunstancialmente diante de certo estado de coisas, mas tanto o mercado, como o facebook, são segundos em relação à literatura. Isto é, devem ou deveriam ser coadjuvantes no processo. Na década de 1950 os poetas concretos (ou ao menos três deles) deram por encerrado “o ciclo histórico do verso”. Recentemente alguém decretou o fim da história. Alguns artistas e/ou fast thinkers têm essa mania de tentar projetar seus próprios dilemas (ou aquilo que diz respeito apenas à sua perplexidade mais íntima) no quadro espiritual do tempo em que vivem. Fecha a conta e passemos à próxima questão.

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O experimentalismo ou o vanguardismo, como conceitos, perdem força. Agora, não são senão possibilidades de performances dentro de um determinado repertório oferecido pela tradição. A propósito dessas questões, posso evocar o nome de Joan Brossa (1919-1998). O pensamento-arte do poeta catalão representa à saciedade a velha-guarda da melhor vanguarda fazendo maravilhas com o mínimo de recursos. A “arte-inicial” contra a arte-final, finalista e financista. Nada de computadores e distorções de letras, esses engodos (quando incorporados às pressas como insumo ao estilo) típicos de uma confiança ou de um entusiasmo, ao fim e ao cabo, naïf nos poderes podres de maduros que marcam a ultramodernidade narcisista. Vírus da virtualândia. Brossa, em termos de temperamento criativo e com seu sorriso carrolliano, era mais dada que surreal. Espancava o saco diáfano da seriedade artística.

Dizia que a nossa não é uma época multimídia, mas multimerda. Seus poemas recusam abordagens conclusivas e explicações poética ou pretensamente corretas. Suas prestidigitações poético-visuais também vão a contrapelo da voga contemporânea, no sentido em que não dão a mínima importância para a necessidade de guarda-costas travestidos de curadores ou de simplórios mediadores sempre sacando de suas algibeiras uma dica de “leitura” com vistas a acalmar a angústia do observador frente à obra-cacto e sempre intratável. O humor esturricado de Joan Brossa, humor de poucos amigos emulatórios, tem mais a ver com Buster Keaton do que com Charles Chaplin.

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O bendito Leminski e sua poesia de fast thinker. Na ambiguidade do verso “poeta é quem se considera” deparamos um axioma que dá corda tanto ao relativismo, como à noção de que é poeta todo aquele que se pensa ou, indo mais longe, que é poeta todo aquele que se pensa em relação não só às coisas prosaicas, mas, inclusive, aos astros e ao mais alto. A fórmula proposta é extremamente atraente, porque promete ao leitor que o acesso à poesia vai depender apenas de ele se considerar poeta ou não. E, de outra parte, se o interessado se revelar como alguém que para em si mesmo, levando-se em consideração, então estará no caminho de se tornar um poeta. O contemporâneo gesto devocional ao ex-maldito Paulo Leminski quer nos seduzir com esta mitologia da periculosidade (punível sempre segundo o modelo do pathos hagiológico: mais martírio do que morte; o apedrejamento, as flechas pontiagudas), periculosidade menos da arte do que da pessoa do artista. O poeta parece se projetar um passo adiante do poema; é o criador que pretende ser amado. Simulacro de virgem libérrima em oferta aos leitores-seguidores celibatários.

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A poesia não é salvação de nada, primeiro porque não é feita por santos, mas por homens e mulheres precários. Por outro lado, se admitirmos que ela é salvação, ela só o será à revelia do que diz, por exemplo, Guimarães Rosa, isto é, à revelia de que o que de fato existe é tão-só “homem humano”, essa coisa limitada e frágil, espremida entre os sentidos e a técnica. E não vejo como a poesia pode ser algo fora da figura do humano e suas contradições; acho que ligar a poesia ao tópico da salvação significa encarecer apenas uma das possibilidades de relacionamento com esta e as demais formas de arte. A poesia será salvação (placebo) para quem, em função do desejo ou do desespero, a quiser como salvação. Eu também já depositei confiança nessa crença de que a poesia tornaria a vida suportável ou tolerável, mas, se olharmos mais de perto, vamos acabar verificando que podemos nos servir de qualquer coisa para fazer da vida algo tolerável, essa propriedade é subsidiária e cambiável, portanto, não é essencial à poesia. E, ao mesmo tempo, concordo com o Antonioni: “não fossem os prazeres (a arte é um deles) a vida seria suportável”. Alguém disse que a poesia (concordando com a noção salvacionista) é “diferenciada”, que tem um “diferencial” (espécie de singularidade messiânica?), mas isso é chover no molhado, tudo é diferente ou semelhante em relação a algo, trata-se de uma propriedade relacional.

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Nos últimos tempos os estímulos sobre a nossa sensibilidade aumentaram em progressão geométrica e produziram digamos assim, figuradamente, um novo surto do “mal de Usher”, de que trata o breve e conhecido conto de Edgard A. Poe, “A queda da casa de Usher”, onde se descreve a mórbida agudez dos sentidos do personagem, o embotamento da percepção pelo extremo requinte. Com efeito, ao chegarmos a essa condição de leitores saturados conseguimos reconsiderar ao menos como ironia, o conto de Poe como a metáfora feita à medida para o nosso agora-agora. O altíssimo grau informacional e a rosácea de referências exigidos pela literatura de culto do pós-tudo, e o risco e a oportunidade de repetição ou de inovação que nos rondam, “otimizaram” a tal ponto o nosso faro supostamente experimentado e de fundo burguês, que só conseguimos suportar ou levar em consideração, agora, as formas mais insípidas de poesia e a fruir textos de ficção que aceleram a fragmentação do real fazendo a leitura se dissipar numa transpiração intransitiva.

(*) Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com é colunista em http://www.mallarmargens.com/ (revista de poesia e arte contemporânea) e escreve quinzenalmente para http://www.sul21.com.br/jornal/

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