Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)
Um dia vale uma vida. Despertar com entusiasmo é começar uma vida, anoitecer cansado é recompensa. Fruir o tempo lento e inabalável da alvorada com seus tons de ouro e depois ao entardecer sentir os rubros desmaiantes do sol se indo, são bençãos que recebemos.
Milhares de fotos me deram o sol, o mar, o verde, as nuvens, o céu e os costões da Praia do Rosa, capturados numa bem rodada Nikkon que fora do craque da fotografia Assis Hoffman, rosense fundador. Lástima que a câmera não trouxe incluída a magia do fotógrafo… Aquelas dádivas da natureza me deram até mesmo um sol nascendo refletido no mar, mas sem o próprio sol ao fundo no horizonte (capa do disco Ouro&Barro).
E a música também captura estas sutilezas? Quem sabe, numa grande formação sinfônica com 60 instrumentos se possa esboçar algo aproximado. A singela canção popular não tem como, não tem jeito de captar ou refletir ou significar essa palheta assombrosa de matizes e andamentos adagio maestoso que a luz do cosmos nos dá. Não por acaso Levi-Strauss usa mais de vinte páginas falando do amanhecer no mar, ao começo de Tristes Trópicos.
Associando esta cenografía com emoções e sentimentos interiores, já se pode praticar algum atrevimento musical. Assim foi em Amanheceu, onde enfileirei quinze cores e matizes gradativos, superpostos e sucessivos, tentando capturar a mágica dos instantes imperceptíveis que se substituem quase que num cromatismo musical, para culminar com o sol pleno e o carinho de despertar a amada ainda em repouso. Gosto muito de “o sol pintar o portal”, de “silêncio na serrania”, do neologismo “labareio”, do “costão veludo negro”. Quando o material é bom, a poesia brota e chega a criar doces problemas, como quando tive que optar entre “esteira” e “estela”. Não seria lindo ter uma “estela” nesta letra? Seria esse o nome da amada?
O tema inicial desta cantiga é um exemplo acabado do excelente método compositivo chamado “coçar a pança do violão”, preconizado pelo uruguaio Alfredo Zitarrosa em entrevista “exilada” que publiquei com nome falso no semanário Versus nos anos ‘70. Das oito notas que compõem o tema, as sete iniciais fazem ressoar as cordas soltas do violão na ordem 5-4-3-2-1-4-1. Creio que esta melodia, muito aberta com vários intervalos de quarta, influenciou para ter uma cadência harmônica espaçosa e uma andança geral bem descansada. Para mais singeleza, um assobio adorna o arranjo, colocado como que ao acaso.
Nas semanas de gravação em Itajaí, recebi de surpresa um presente do pianista Juca Nascimento, ao pedir-me que ouvisse algo gravado por ele numa noite insone. O tal “algo” são os teclados que se ouvem na gravação, sutis e rigorosamente dentro do clima etéreo que propõe a canção. Já na finalização gráfica, associei o trecho de letra “esteira de ouro e prata no mar” da Praia do Rosa com uma foto da boa e fiel Nikkon que estava guardada. E foi bingo!
Assim se destila a magia da canção: céu, mar, costão, Assis, Levi, Alfredo e Juca, assim se decanta a letra da canção, assim se desperta a amada, assim um assobio carrega mil emoções fundas. Amanheceu, amanheceu, amanheceu!
Amanheceu
Raul Ellwanger
Escurinho da aurora
Verde púrpura e rubro
Incendiando o horizonte
De lilás celeste chumbo
Roxo azul e amarelo
O costão veludo negro
De repente é labareio
“mar del rosa” com vermelho
Lá vem o sol pintar
O portal de um novo dia
Milagre natural
Silêncio na serrania
Esteira de ouro e prata no mar
Já posso despertar meu amor
Amanheceu, amanheceu
Amanheceu…