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14 de abril de 2017
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10:30

Músicas catarinenses: Cantigas catarinas

Por
Sul 21
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Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)

Esta toada tem um lugar especial dentro do bloco das canções “catarinas”, pois seus versos me foram dados por uma querida amiga, dona Eugênia Perpétua da Rosa. No caminho do êxodo de jovens rio-grandenses rebeldes e alternativos das gerações pós ’68, ocuparam lugar destacado Florianópolis, Garopaba e Imbituba, onde, na descida para o Canto Sul da Praia do Rosa, ficava a morada de Dona Ogena e Seu Dorva, o nosso Dorvino Bernardino da Rosa. No engenho de farinha tirado a boi, com “sôlo” de barro pisado, água da fonte e banana e café no “pumau”, foram recebidos aqueles malucos cabeludos, com seus palheiros de perfume adocicado, suas canções irreverentes, suas jurássicas pranchas de surfe, seu pouco numerário, sua carência de preparo profissional e sobra de sonhos e desejos.

A cultura oral da região foi trazida dos Açores e mantida apenas nas memórias, dado o quase absoluto analfabetismo, numa comunidade sem escola, sem biblioteca, até mesmo sem padre que dissesse missa, sem estradas que a ligasse aos municípios vizinhos. Mesmo assim souberam os “bicuíras” preservar e viver de seu idioma, sua religião, sua medicina, sua culinária, sua poesia, sua música, sua literatura oral, sua agricultura, sua pesca, sua náutica, suas técnicas de arquitetura, tecelagem, construção naval, drenagem e suas ferramentas. Um aspecto impressionante está na abundância de poesias, versos, ditos e adivinhações que traziam, guardaram e recriaram.

Todos gostavam muito da época da farinhada, pois as famílias se reuniam num dos engenhos (casa da farinha) e compartilhavam várias horas de trabalho em mutirão e conversas divertidas à beira da roda de cevar e do forno de secagem com seus beijus sendo assados com farinha recém ralada. Nas rodas de raspagem da raiz, alegradas com brincadeiras, os jovens aproveitavam para jogar versos nas chamadas “cantigas de ratoeira”, quando passavam mensagens veladas de amor e sedução a algum dos presentes, em quadras sempre bonitas e delicadas, que muitas vezes geravam namoricos e até bodas. Registrei muitas delas com Dona Ogena e seus filhos Leoni e Fernando.

Inspirado no estilo dos ternos de reis tradicionais da região, fiz uma melodia e nela adaptei versos que me encantavam especialmente, usando um deles como refrão que retorna e prepara o texto seguinte. A primeira estrofe é de uma riqueza poética extraordinária, e de uma complexidade quase filosófica, ao associar o pensamento a uma pluma solta ao vento, ao entrecruzar sentidos e comparações quase como num quebra-cabeças poético. A palavra “dirijo” substitui a original que era “enguio”, para melhor compreensão. Fiz o mesmo com “travesseiro” por “cabeceiro”.

A primeira estrofe de B, fala da sensação que se tem ao subir os cerros da cidade de Laguna, onde as lagoas, os canais e o mar nos dão a ilusão de que estamos voando sobre águas. Adverte também que o engano se vê e dói. A seguir, um clima de ternura, com o repouso da cabeça sobre o perfume, o suspiro antes de adormecer, quem sabe numa sugestão de intimidade conjugal futura. Após o refrão, a quarteta é de minha autoria, para explicar um pouco a origem da letra que vem da tradição, recordando a cantoria da doce senhora enquanto realizava suas tarefas, quando o som de sua voz se misturava àquele característico das batidas do pilão sobre os grãos do café.

Na derradeira estrofe de B, aparece o costume de o jovem varão trabalhar na pesca embarcada, em Cabo Frio ou Rio Grande. Após alguns anos amealhando recursos, volta para casar com a prometida que o esperou todo este lapso. Mas aqui a moça quer antecipar o casamento e pede a ele que a leve, transgredindo o hábito e recato da espera. Bem no finalzinho, se explica melhor: o sentido duplo da expressão “indo” fala da ida para longe e da realização sexual. Transar, desvirginar-se, não dói, a saudade é que dói.  O cruzamento de sentidos, feito com rigor métrico e rimas adequadas, é notável, assim como a sonoridade dos “is” qualifica a quadrinha.

Desfrutar da “fazeção” de uma cantiga é muito bom. Se agregamos a alegria de lembrar e citar pessoas de mais alta estirpe, generosidade e sabedoria, é melhor ainda. E, se nisso ainda podemos estar falando de queridos amigos e amigas, tudo fica mais agradável. Depois disso, o bom mesmo é cantar a cantiga, com respeito e devoção. Como creem todos os tamboreiros, maçambiqueiros, candombeiros e sambistas, a música é a fala dos deuses. Oremos, cantando.

Cantigas catarinas

Raul Ellwanger

A cantiga é feito pluma
Que voa com o vento
Não cuide se eu por cantigas
Dirijo meus pensamentos

A Cidade de Laguna
Cercada de água por dentro
Pode que tu logres outro
Mas pra mim és ferimento

Deita aqui cama de flor
Travesseiro de alecrim
Antes de pegar no sono
Dá um suspiro por mim

A cantiga é feito pluma
Que voa com o vento
Não cuide se eu por cantigas
Dirijo meus pensamentos

No Porto Novo dos Rosa
Canta seu verso menina
Dona Eugênia de Dorvino
Do coração catarina

Marinheiro do Rio Grande
Me convida vamos juntos
Eu indo contigo não sinto
Eu ficando sinto muito.


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