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28 de abril de 2017
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10:00

Canções catarinenses: Canta-passará

Por
Sul 21
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Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)

Esta é mais uma canção do ciclo das “catarinas”, cujo número rivaliza com o daquelas “rio-grandenses”. Nasceu num momento de euforia emocional e corporal, quando na Praia do Rosa cheguei à beira do mar do Canto Norte, após meses de trabalho aborrecido na cidade grande. Tocando os pés na areia, fui tomado de uma alegria expansiva que me fazia dançar e cantar aos gritos com o rosto voltado ao sol. Ali mesmo, numa ginga estranha, plasmou-se um ritmo composto de três tempos mais dois tempos, perfazendo o 5/4 que ordena toda a canção.

Para expressar a originalidade do efeito rítmico quebrado do chamado compasso composto, uso os nomes dos objetos e dos materiais naturais usados em sua feitura, numa dicção algo stacatto que busca mostrar o lado lúdico que mesmo uma composição complexa pode conter. Num jogo de palavras, mostro o nome da cidade de Imbituba, chamada carinhosamente Zimba, que parece significar “muito imbé”. Tipiti é balaio gorducho, alargado e sem fundo, que cheio de massa de mandioca será apertado pela prensa para escorrer o soro indesejado. O jiqui é variedade de balainho de serviço na pesca, bom para trabalhar com o espinhel, chumbada e tatuíra. Todos feitos na mão e no canivete, com bambu e cipó São João. Já o samburá é balaio da boca pequenina para o tarrafeiro guardar o peixe com segurança, enquanto segue sua lida. A rede côncava para pegar siri, com boca redonda tipo coador de café, leva o nome de puçá. Piteira é planta da folha gorda, rija e espinhuda, voltada para cima, da qual se tira a fibra para fazer corda, sendo o gravatá uma espinheira baixa, usada para dividir os quintais, cercar as galinhas e proteger o pomar. Tem ainda o peri, junco típico da região, usado para fazer esteiras, que nasce ao redor das lagoas.

O ritmo de 5/4 tenta imitar o bulício nervoso dos pássaros, em contraposição com a passividade do pássaro-pessoa na cidade. Oprimido por poluições de todo tipo, pirado, vai o cidadão gastando seus dias sem rumo nem ritmo, sonhando talvez em alguma madrugada reencontrar a mata, a natureza e a si mesmo, para cantar desnudo frente ao mar numa manhã de inverno.

Um momento de grande emoção foi para mim a noite em que o coral de 50 vozes Expresso 25 de Julho estreou esta canção na sala lotada do Teatro Solis de Montevidéu, com direção e arranjo do maestro Pablo Trindade, presentes muitos amigos uruguaios e brasileiros. A cantiga do “pé na areia” chegou à sua noite de gala e tapetes vermelhos, quem diria! Gracias a la vida!

Canta-passará

 Raul Ellwanger

Tipitipiti balaio
Tipiti peneira
Tipiti jiqui
Samburá puçá piteira
Zimbituba esteira
Gravatá peri

Canta canta passarada
Canta madrugada
Cantorias do mar

Vida vida que beleza
Vida natureza
Pra gente gozar
Canta canta passará

Vai pro meio da cidade
Mastigar fumaça suspirar pirar
Mas se eu era um passarinho
Cobiçava a mata pra poder cantar


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