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7 de abril de 2017
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10:00

Canções Catarinas: Coração catarina

Por
Sul 21
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Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)

 

Na minha turma do Conservatório Manuel de Falla, em Buenos Aires, estava a cantora Suzana Lago, integrante de um lindo grupo de música popular chamado Anacrusa. Com este nome tomado da técnica musical, faziam um estilo muito original de mistura e soma de elementos estéticos de diversa origem, naquela linguagem que se chamava proyección folclórica. Nesta convivência e descoberta é que fui entender as bases de nosso movimento musical dos anos ’60 em Porto Alegre, que procurava trilhar o mesmo caminho. Comecei a brincar sobre a palavra anacruse, como forma de homenagear o pessoal. Começa assim esta letra, fazendo inclusive uma anacruse na própria palavra…

Ao retornar ao Brasil, passei uns dias na praia da Guarda do Embaú, retomando a “descoberta” do universo açoriano-catarinense e das suas belezas naturais, já agora com novas visões que aprendera nos estudos de sociologia e folclore feitos no Chile e Argentina. O enamoramento com esse ambiente foi assim mais profundo e inteligível para mim e resultou na série de canções que foram sendo chamadas carinhosamente de “catarinas”.

Tomando um ritmo ternário venezuelano que conhecia como “polo”, cuja cadência lenta carrega muita elegância, fui escrevendo a letra, que começa já com a barra do Rio da Madre chegando ao Atlântico sob a bênção do costão verdejante, cenário marcante da Guarda do Embaú, e com o cruzamento do mesmo rio, para poder aceder à beira do mar. Ao sabor do vento, ali perco meu coração, levado pelas rajadas do típico Nordeste. No uso do violão, nesta parte da canção, os três acordes repetitivos mantêm livre a corda sol, gerando agradável e velado contraste com as demais cordas, que caminham pela tonalidade de Fá maior. Junto ao violão e à viola de 12 cordas, o arranjo de Zé Gomes cria com as cordas, a trompa e a harmônica um clima colorido, sugestivo, alegre e vivaz.

Começa a longa segunda parte da música com o uso do baixo pedal, parado sobre a nota Dó. Combina com a letra meditativa, com o autor olhando ao longe e pedindo ajuda a Mestre Sabino. A sonoridade misteriosa da trompa parece trazer o infinito para dentro da canção. Logo se abre em tensões originadas de diversas cordas soltas enquanto a harmonia caminha num vai e vem de ondas (desde “varei” até “cismou de viajar”). Já a cadência final escapa a este ambiente algo folclórico, emendando uma sucessão mais sofisticada de acordes por intervalos de quartas e harmonias com nonas maiores e menores (de “comadre” até  “butiá”). Um longo e amplo contracanto da harmônica de Roberto Moraes se insinua num diálogo gentil por detrás das vozes, reforçando o clima telúrico ao lado do violão e da viola.

Merência e Sabino são daqueles casais adoráveis que aparecem nessas vivências catarinenses e açorianas. Alegres, espertos, sóbrios, ascéticos, generosos e gentis, têm uma riqueza espiritual que contrasta com sua parca posse material. Nesta Coração catarina, peço a eles que me ensinem, que me presenteiem; e esses gestos e regalos, que em si são coisas mínimas, portam as grandes bênçãos que enchem nosso peito de amor e doçura. Daí que, mais uma vez nestas tantas letras “marítimas“ que parecem ser uma só repetida e larga letra, o cantor se perde pelo mar; ele mesmo não passa de um risco de prata sobre as ondas, não passa do perfume fugaz duma fruta nativa. 

Coração catarina

                                Raul Ellwanger

Na cruza do rio
Na curva do rio
Na beira do mar
Onde faz a barra do rio
Deixei um dia meu coração
Virou no vento e levantou
Mês de março, nordestão
Foi no ventão que ele voou

Na pedra Vigia
Da Guarda, Guardá
Varei noite e dia
Requebros do mar
Compadre Sabino
Me ajuda a encontrar
Coração Catarina
Cismou de viajar
Comadre Merencia
Me ensina a escalar
Alqueire, farinha
Mandioca, araçá
Meu riso moleque
Cambou lá pro mar
Foi pulo da tainha
Foi gosto do butiá.


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