Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)
Esta canção foi apresentada ao público somente uma vez, seguindo inédita em discos. Cantei-a em 1984 ante umas 30 mil pessoas na cancha de futebol do Clube Atlanta, de Buenos Aires, durante um festival internacional promovido pela Central Sindical PIT-CNT do Uruguai. Sob o lema Por una democracia de avanzada, os uruguaios do insilio e do exílio reuniram num concerto-monstro artistas de vários países, solidários naquela luta pelo fim da ditadura em sua pátria. Nesse momento, a própria Argentina recém engatinhava na recomposição democrática.
Este tema tem muito valor afetivo para mim, pois lembra a jovem Marta, que ficou escondida em Porto Alegre, com a ajuda de minha família. Fugindo da brutalidade do regime argentino de 1976, acabou por dar à luz a Ana, no Hospital Fêmina da rua Mostardeiro, sempre acompanhada por meus familiares. Seguindo a diáspora de seus pais, Ana morou com ou sem eles em outras cidades e países. Na chamada “contraofensiva montonera” de 1980, dezenas de jovens que voltavam à Argentina foram sequestrados e desaparecidos pelo regime castrense, entre eles Marta e o pai afetivo de Ana.
Elaborei simbolicamente as figuras de Marta e seu noivo, futuro papai de Ana, como o que realmente eram: jovens estudantes secundaristas da capital portenha. Seus passeios pela cidade, seu namoro nos típicos bares do centro, sua descoberta sexual, a militância, a fecundação. Tudo permeado pelos ideais libertários que orientavam aquela geração, pelo caminho do exílio brasileiro, pelo “vício” do destino que os obrigava a retornar mesmo em situações periclitantes, pelo nascimento de Ana soando como um grito de vida em meio à barbárie. Ao tempo de compor a música, eu desconhecia as figuras dos dois pais falecidos da menina, o biológico e o afetivo. Por outro lado, da tragédia completa e óbito de Ana aos vinte anos devido a um câncer na laringe, só vim a saber muitos anos após sua consumação, graças à biografia escrita pela tia paterna, Cristina. Assim, quando cantei na cancha do Atlanta, Ana poderia ter escutado sua canção, que hoje é apenas um rabisco amoroso e nostálgico na palheta do tempo, apenas espuma como a do mar de Capão de Canoa, onde a menina pôde desfrutar algum tempo.
Se há uma canção que me complica a vida, que me dói nas entranhas, com certeza é esta. Talvez por isto não a tenha gravado. Trata-se de uma insuportável soma de pudor pela intimidade das personagens, de impotência ante o arbítrio, de revolta pelo destino das crianças, de repúdio a decisões políticas irresponsáveis, de dor pelo desaparecimento de amigos, de piedade pelo sofrimento de familiares. Se nunca a gravar, por algo será e fica aqui este registro. Ana se chamou Ana Victoria, apesar de tudo.
Dois lindos amantes
Raul Ellwanger
Eram dois lindos amantes da justiça e do ideal
Eram jovens estudantes na idade mais sensual
Namoravam em Buenos Aires pelas praças e pelos bares
Se amavam em liberdade feito as aves pelos ares
Eram dois lindos amantes.
Uma semente do jovem varou a vela do ventre
Da menina feito pólen pó da vida e semente
Mas o vício do destino chamou o rapaz à guerra
Duro ofício clandestino que o levou de volta à terra
Eram dois lindos amantes.
No Brasil ela penava e apalpava seu tesouro
Mas voltou, foi fuzilada como o companheiro louro
Mas nascera outra argentina teve por nome Victoria
Victoria mãe e menina Victoria vida Victoria
Se o cenário perde a cor a vida tem outro ensaio
Victoria filha do amor Victoria filha de Maio.