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31 de março de 2017
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10:00

Canções latino-americanas: Fronteiras

Por
Sul 21
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Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)

Este tema surgiu quando voltei ao Brasil, recordando o Chile e a Argentina que me acolheram em épocas difíceis. Tentei pensar minha trajetória de jovem desterrado sem nenhum conhecido fora do Brasil, o mundo imenso e desconhecido, com suas novidades, riscos e descobertas. Gravado em 1978 sob censura e ditadura, tem certas áreas veladas de difícil compreensão, mesmo para mim. Assim, sempre associei “porteira” com a grade do cárcere.

Seu estilo é uma boa mistura, má confusão ou sofisticada fusion. Não sei defini-lo, mas anda mariscando pela tonada e pelo malambo com certeza. No cruzamento incerto entre o 3/4 e o 6/8, aqui predomina o tempo binário deste último, sempre muito  agradável e muito gostoso e vital para tocar com energia e expansividade expressiva.

Gravada no disco coletivo Paralelo 30, esteve no início de minha carreira profissional, atrasada por dez anos devido à perseguição política. Já traz em si os elementos de estilo que a seguir, a partir do vinil Teimoso e vivo, irão tingindo com ares de América Latina muitos dos meus trabalhos, como o rasguido do violão, a mescla de ritmos, o foco do assunto, o próprio idioma, as versões, os parceiros e os convidados. No caso de Fronteiras nos faltou um bombo leguero, que teria dado uma cor especial ao tema, mas ao mesmo tempo ousamos colocar o solo de um então  modernissimo Minimoog monofônico! Ali estava a proyección folclórica.

Olhando a letra com lupa, vê-se que ela exalta o lado positivo e aventureiro do périplo do cantautor, deixando de lado as queixas e tristezas naturais nestes casos de exílios e perdas. Fala em aprender a viver, em novos amores e amigos, em novas paisagens; diz do cimento (base, construção) da vida, do pão e do vinho, dos países como jardins e raízes. Decididamente, não é um tema de protesto, é antes de tudo uma exclamação vital, um brado incontido.

Para minha linha do tempo, a canção Fronteiras foi divisória em vários sentidos. Separa dois momentos: aquele em que eu era somente músico, daquele em que começo a me perfilar como criador de canções. Também com ela a bordo realizo meu primeiro xou individual autoral, chamado não por acaso de Fronteiras. Por fim, nesse momento começo a ter uma vida profissional como músico. Adquiro autoconfiança, encerro o exílio e recomeço a carreira truncada.

A expressão “contrabandeando coragem” me chamou sempre a atenção, no sentido de adjetivar uma galera e uma geração que pagaram uma tarifa muito alta por seu atrevimento político e sonho reformador. Cruzar e sobreviver ao AI-5 e à clandestinidade, escapar ao pinochetazzo e driblar o videlazzo, constituíram-se em façanhas e  vitórias. Daí que eu goste de ouvir a poética de “foi cruzando fronteiras que aprendi a viver” e também “nas andanças por lá foi que aprendi a voltar”. Afinal, a verdadeira pátria do exílio é a porta de casa.

Fronteiras

Raul Ellwanger

Faz bem tempo me larguei
Mundo velho sem porteira
Foi cruzando fronteira
Que eu aprendi a viver

Pra outra moça me entreguei
Cordilheira foi meu chão
Um novo irmão encontrei
Cantando coisas do amor

O cimento do destino
Semeei em terra amiga
Nas andanças por lá
Foi que aprendi a voltar

Consumi o pão e o vinho
No cansaço da viagem
Contrabandeando coragem
No jardim dos meus países
No abraço das raízes.


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