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8 de abril de 2017
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Sul 21
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Cena de “Eu, Daniel Blake”

A vitória da contra-revolução neoliberal é uma vitória política, que soube combinar a força da espontaneidade do mercado, com  o convencimento político de que a solidariedade e a igualdade são improdutivas e opressivas.
Tarso Genro

O ex-Governador Tarso Genro, um dos pensadores mais lúcidos da atualidade no campo da esquerda, traz à reflexão em seu último artigo publicado nesta tribuna – “O dia em que Daniel Blake encontra Gramsci” – , os dilemas da Teoria e Praxis Crítica nos tempos atuais. “Eu, Daniel Blake” é o título do filme inglês, do diretor Ken Loach,  que descreve a trágica e solitária  situação social e existencial de um homem simples do povo, operário, em meio à parafernália tecnológica e institucional das sociedades contemporâneas. Tarso destaca e problematiza sua fala desesperada: “os animais e as máquinas não têm medo da morte, não sentem angústia diante do nada”. Isto é: Os homens os temem. Este o paradoxo atual: Uma economia que nos oferece tudo mas nos conduz ao nada na terra do nunca… Uma economia que produz para acabar com a fome no mundo e não obstante, a mantém. A morte como alívio. E confronta Tarso Genro,  diante disso, este vazio,  às palavras de Gramsci no caminho da prisão fascista; “a necessidade de se habituar a pensar e a estudar também nas condições mais difíceis”… Com uma advertência: o “nosso ‘pensar e ‘estudar’, deve ser integrado aos movimentos de resistência concretos, contra as reformas em curso, porque quanto mais elas forem aplicadas integralmente mais “insolidária” e insegura será a sociedade que vivemos.

O texto merece florescer em debate, pois se trata de uma bela síntese das raízes que nos afetam há já algumas décadas.

O ponto de partida de Tarso, corretamente, são as mudanças estruturais do capitalismo na virada dos anos 70-80, quando, literalmente fechou-se o século XX, ao término de uma era em que “o capital precisou reconhecer e outorgar direitos para ter trabalho produtivo, gerar consumo e alavancar lucros.” Uma outra era, para alguns até denominada de “New Age” inaugurou-se, com mudanças na tecnologia e na organização da produção material e capitalização do excedente,  nas formas de pensar e comunicar, potenciadas pela microeletrônica que desembocou na INTERNET, nas estruturas sociais e de ocupação das cidades, nas estratégias ideológicas de enfrentamento aos novos tempos. Tarso aponta, com acerto: ” As mudanças qualitativas na produção capitalista, que transita, hoje, do modelo industrial clássico da fábrica moderna – com suas extensas linhas de produção automatizadas que ainda vão perdurar- para a substituição da mão-de-obra operária tradicional pela robótica. A informática, o uso da telemática, o aproveitamento dos recursos da nanotecnologia, o controle pelos resultados, a produção e o uso da inteligência artificial é a nova equação histórica da renovação capitalista.” E afirma, também acertadamente, que, enquanto as forças conservadores moldaram uma nova ideologia, dourada pela globalização, para enfrentar estas mudanças, enfatizando o papel do mercado, da meritocracia e do gene egoísta da espécie humana (individualismo), a esquerda aninhou-se nas suas barricadas tradicionais em torno da metafísica da revolução alimentada por um dogmatismo doutrinário que reforçou apenas um corporativismo, sem ecos no conjunto da sociedade. Sublinho, a propósito deste descompasso entre a ofensiva conservadora e a defensiva crítica:

“Neste mesmo período, a esquerda ficou atada nas análises da contradição clássica da sociedade industrial, entre uma “burguesia”, que não é mais a mesma – pois é mera caudatária do capital financeiro globalizado – e o “proletariado”, que não mais o mesmo, pois foi levado a ser indiferente à “escória” desempregada, que se marginalizou ou veio de “fora”, disputar seus empregos.”

(…)

“Não é de pasmar que os debates internos e os Congressos dos partidos políticos do campo da esquerda, despertem pouca atenção, fora de um círculo restrito dos seus militantes e dirigentes e se tornem, mais ajustes entre já convencidos, do que propriamente respostas amplas a questões políticas e econômicas de fundo, que já estão no cotidiano das classes populares. É que as propostas políticas para o “hoje” conservam, quase sempre, a visão de um passado idílico, que não existiu, e o gosto de uma utopia perfeita, que não se realizou. Falam, em regra,  para trabalhadores que não escutam e para cidadãos, em geral, cujas subjetividades vinculam-se mais aos sabores do rentismo, do que à jornada comum da sobrevivência do povo.”

Ou seja, a esquerda fala para ela própria e se encanta com a  pureza ideológica de sua própria voz. Como aponta a Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, do próprio PT, sobre os valores dominantes na periferia de São Paulo, nele vicejam a valorização do mérito, do mercado, da Igreja, bem como a desconfiança diante do Estado cobrador de elevados impostos. Com mais profundidade e há mais tempo o sociólogo Ronald Inglehart e seu grupo de pesquisadores debruçados em pesquisas bienais  em cerca de 100 países, dizem mais ou menos o mesmo, sendo recomendável, a propósito a leitura de MODERNIZAÇÃO, MUDANÇA CULTURA e DEMOCRACIA, Ronald Inglehart e Christian Welzel (Brasília/São Paulo: Editora Francis & Verbena Editora, 2009), prefácio de Henrique de Castro e Benicio Schmidt:

“Li a pesquisa da Fundação Perseu Abramo. As análises melhorariam muito se usassem Ronald Inglehart (World Values Survey), que há décadas Inglehart e seu grupo pesquisam em cerca de 100 países em baterias de 2/2 anos. O melhor levantamento mundial conhecido. No Brasil o “campo” está sendo realizado e é comandado por Henrique Carlos de Castro, ex-UNB e hoje na UFRGS, cientista político que trabalhou em Michigan com Inglehart e grupo. Por ser seu editor no Brasil não me sinto constrangido em indicar seus trabalhos, porque de reconhecimento mundial e praticamente desprezado pela comunidade de ciências sociais no Brasil. Uma lástima, pois é a grande referência quanto ao estudo dos valores sociais relacionados às estruturas sociais. Relação esta que modificou-se velozmente com a globalização e a supremacia dos valores pós-materiais. Mas, nem o PT , nem o PSDB e seus órgão conhecem estes trabalhos.”

Benicio Schmidt, Sociólo, PhD Stanford USA, Editor

O que importa registrar é que o mundo mudou e as percepções do mundo por diversos segmentos sociais também está mudando rapidamente, seja em decorrência dos traumas da globalização, que faz com que regiões tradicionalmente à esquerda na Europa e Estados Unidos hoje se alinhem com o populismo de direita, seja em decorrência de tensões religiosas, conflagrações políticos e novos valores. Tarso levanta, com sua espiada nesta questão um problema que mais dia, menos dia, deverá entrar na pauta da esquerda: A atualidade discurso. E aqui a lembrança do filme chileno “NO” que retrata a polêmica de discursos no seio da esquerda por ocasião do plebiscito naquele país, o qual, vencido pela oposição a Pinochet permitiu o fim de seu regime odioso.

Faltou, talvez, também, ao autor, nesta reflexão,  evidenciar melhor uma importante flexão da esquerda no mundo inteiro e que coincide com dois processos simultâneos, igualmente enfraquecedores da ideologia mais humanista: A derrocada da União Soviética como Pátria do Socialismo e a emergência das China, em total confronto com a consigna clássica da edificação do socialismo como montagem de uma economia centralmente planificada, numa desabala carreira como potência mundial intra-capitalista. A flexão corresponde à desmontagem de importantes partidos comunistas na Europa e América Latina, que passam a engrossar a social-democracia num conluio inaceitável ao neoberalismo emergente, enquanto a velha esquerda, nestes lugares se refugia, como Lutero na Reforma Religiosa, nos dogmas sagrados de um marxismo-leninismo sem consequências. Importa registrar, aqui, que a grande exceção a este movimento consistiu precisamente na emergência do Partido dos Trabalhadores no Brasil, sob a égide da Igreja, de um novo sindicalismo com epicentro em São Paulo e de grande parte da Inteligência crítica, o qual, precisamente, por se distanciar dos dois polos do resto da esquerda ocidental, tanto a ortodoxa remanescente, quanto à revisionista,  consegue se transformar num poderoso Partido de Massas com inusitada capacidade de formulação de políticas alternativas à lógica neoliberal. Foi, certamente, este experiência – e não tanto a de Chavez com seu bolivarismo -, que acabou repercutindo positivamente em todo o continente latino-americano criando uma inusitada corrente mudancista que apoiou, mas jamais aderiu, compulsoriamente ao chavismo. Os tempos vindouros, recentes, de crise da esquerda no continente, o comprovam. A Venezuela de Maduro está cada vez mais distante como modelo inspirador dos movimentos políticos de esquerda latino-americana. Um deles, a democracia cidadã, no Equador, com a vitória de Voltaire Lenine Moreno já se proclama independente. Chile e Uruguai, nem falar.

Tarso, então, faz sua aposta para enfrentar os desafios atuais que, se são do Brasil, são, também, da esquerda em todo mundo ocidental: Caminhar com Gramsci, distante do revolucionarismo, no sendeiro de uma atualização da social-democracia, isto é , de valorização do reformismo como afirmação da liberdade e da reconstrução de referências capazes de recuperar o sentido da vida e, portanto, o próprio desejo de viver, ou ainda, “que recupere o desejo da utopia e o gosto pela democracia” :

“A utopia de uma sociedade “regulada”, como dizia Gramsci – pautada pela igualdade que faz o reconhecimento das diferenças – começa em cada reforma que controle o sociometabolismo espontâneo do capital e ordene as suas energias, para melhorar a vida cotidiana”.

Aí, pois, para Tarso, a colocação da questão do socialismo, já está definitivamente distante da ideia fixa de acumulação de forças para a consumação da trindade mística da Revolução, na forma da (1) construção do Partido de Classe, (2) assalto ao Poder e (3) edificação do socialismo como expropriação da propriedade do capital e sua substituição por uma economia estatizada: um movimento capaz de suspender a ofensiva neoliberal e recriar energias populares capazes de procurar os caminhos da liberdade num clima verdadeiro  democrático à base de uma sociedade menos desigual.

A guisa de conclusão, é importante registrar que esta dicotomia entre esquerda revolucionária e esquerda reformista, a primeira fundada sobre os princípios do marxismo -leninismo-estalinismo, a segunda na aposta do movimento emancipatório da micro à macro política não é novo no seio da esquerda. Ele nasceu na própria social-democracia do século final do século XIX vindo a se consolidar depois da Revolução Russa de 1917, quando o modelo bolchevique se consagrou como o  único e verdadeiro caminho para a construção do socialismo. Desde então, tanto as corrente revolucionárias como reformistas se multiplicaram em versões e lideranças, não raro, como com Gramsci na Itália, como o eurocomunismo dos anos 70 na Europa e como em algumas experiências nacional-desenvolvimentistas na América Latina,   entrelaçando-se em processo e gerando aproximações e repulsas periódicas.

Na esquerda estrategicamente revolucionária, Isaac Deutscher já , percebia, nos anos 60 , três correntes distintas: A soviética, sob hegemonia da URSS, a chinesa, sob hegemonia da China e a castrista, sob hegemonia de Cuba. Cada qual com seu receituário tático e não poucos seguidores. Sob estas correntes majoritárias nunca deixaram de existir duas outras correntes, de forte apelo revolucionário, embora de pouca expressão : o trotskysmo, com sua obstinação pelo internacionalismo da revolução permanente, e o anarquismo. Contemporaneamente, subsistem as três correntes apontados por Deutscher sintetizadas em vários Partidos Comunistas na Europa e América Latina, sem, contudo, uma referência em modelo inspirador, enquanto o trotskismo e o anarquismo lhe seguem os passos, sobretudo esta última que vem sobressaindo-se em performances contestatórias pelo mundo inteiro. O trotskismo, depois da queda da URSS, perdeu grande parte de seu impulso, vindo a se equiparar, cada vez mais às correntes ortodoxas do marxismo-leninismo, isento, apenas do culto a Stalin. Sua crítica ao socialismo soviético, reduzida à traição burocrática da Revolução de Outubro pelos aparatos da construção do socialismo num só país, vai perdendo appeal diante das mais modernas avaliações, a partir de Hanna Arendt, das distopias geradas pelo totalitarismo. Em compensação ao desfalecimento do ardor revolucionário dos comunistas tradicionais a Igreja Católica, entretanto, vem cumprindo uma forte influência reanimadora, sobretudo na América Latina, ao proclamar, com apoio dos novos filósofos com E. Lévinas, Ernst Bloch e Adorno o primado da ética na vida pública, acompanhada de uma intransigente e radical loucura por justiça. O mesmo fenômeno estaria por trás, embora de forma muito mais original, no mundo muçulmano, em sua versão jihadista.

No âmbito da esquerda reformista ou social-democrata, tampouco foram pequenas as variações nas últimas décadas. A mais importante consistiu no seu empoderamento derivado da virada reformista dos comunistas na década de 90, com o lamentável pecado, agora corrigido, da adesão ao neoliberalismo.  Mas a grande singularidade foi a criação e ascensão ao poder do Partido dos Trabalhadores no Brasil, em 2002, o qual, mesmo não se identificando como social-democrata, a praticou ao se distanciar da dita Trindade Mística da esquerda revolucionária. O peronismo argentino, enfim, depois da guinada a direita do Governo Meném, encontrou-se com a práxis reformista como caminho da justiça social. No pacto social democrata firma-se um acordo para a redistribuição dos incrementos de produtividade na economia entre o capital e o trabalho tanto mediante elevação dos salários reais da classe trabalhadora como pelas garantias sociais mediadas pelo Estado, que vão desde a educação pública e gratuita em todos os níveis até sua forte presença, através da  destinação de recursos orçamentários para a seguridade social. Isso está longe do sonho revolucionário, mas é, pelo menos uma resposta à barbárie em curso. Possível.

Neste ínterim, o que era um bloco monolítico de interpretação de Marx, com a só defecção do socialismo evolucionário que acabaria abandonando-o como inspiração ideológica, hoje tornou-se uma colcha de retalhos costurada por inúmeras tendências, com a consequente perda de unicidade do próprio movimento comunista e, portanto, da definição do que seria “a esquerda”. Reuni, há tempos, uma coletânea com diversos autores, cada qual com sua interpretação própria do que isso significaria nos dias atuais. À falta de uma tendência hegemônica, subsiste, porém a velha e boa definição separadora entre esquerda e direita de Norberto Bobbio: A primeira prioriza a igualdade, a segunda, a liberdade, com a ressalva de que, cada vez mais a liberdade dos liberais se converte na gaiola de ouro que prende a sociedade em mitos conducentes, à sua vez, mais à barbarismo  do que à civilização, inclusive pelo horror ao Estado e à Lei.

Congratulações, pois, ao Tarso Genro pela valiosa contribuição à crítica desta difícil fase que atravessamos no Brasil e no mundo. Ele chama a atenção para o fato de já estamos sob o império de um mundo em dissolução, ao qual devemos responder com a reconstrução de pontes das garantias sociais e liberdades bombardeadas pela avalanche neoliberal, felizmente abalada pela crise de 2008, que lhe retirou o charme de invencibilidade supra-histórica. Resta-nos lutar pela retomada do crescimento, o qual dará, com a Reforma Tributária, novas fontes de financiamento capazes de entregar ao Estado sua função humanizadora na forma de promoção do desenvolvimento e da cidadania. Se a sociedade tecnológica contribui, no plano da produção, para a eliminação de empregos, e no plano da medicina, para o envelhecimento da produção, com aumento dos trabalhadores ditos improdutivos, ela aumenta, também, o nível de renda global da qual o Estado é inevitável e inelutavelmente sócio estratégico. Sócio, enfim, para o bem estar social numa sociedade mais humanizada e não apenas do capital que o acossa.

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Paulo Timm é economista pós-graduado CEPAL/ESCOLATINA – Prof. aposentado da UnB . Fundador do PDT.


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