Colunas>Mogli Veiga
|
5 de novembro de 2016
|
09:00

As Caravanas do Deserto

Por
Sul 21
[email protected]

caravana

Por Mogli Veiga

Moussa é um tuaregue nascido na costa mediterrânea da Tunísia. É o que se chama de um homem azul. Um imazigh (homem livre) como se definem os tuaregues. Seu pai lhe passou todo o conhecimento necessário para ser um guia de caravana. Gostava disto, pois assim mantinha a tradição dos homens azuis, viajar pelo deserto, estar em contato com sua diversidade e os sobressaltos dos caminhos. Só duas coisas o deixavam apreensivo, as tempestades de areia provocadas pelo siroco, um vento forte e quente originário no deserto e que sopra em direção ao Mediterrâneo, e os salteadores do deserto, cujos encontros podiam resultar em mortes.

Moussa era filho de uma família muçulmana, mas se declarava um animista, pois para viver no deserto era preciso proteção de todos os deuses da Mãe Natureza.

Seu pai era analfabeto, tinha apenas o conhecimento que lhe fora passado oralmente pelos seus antecedentes. Com sua mão aprendeu a ler e a escrever. Ela tinha sido professora e despertara nele o gosto pela leitura. Também recebeu dela o gosto pela música que os estrangeiros traziam do além mar.

Numa de suas muitas viagens, encontrava-se em Adis Abeba, no mercado da capital da Etiópia. A tarde se aproximava e Moussa chamou a mulher, o filho e demais integrantes de sua caravana, para arrumar as coisas que era chegada a hora de partir. Todos começaram a se movimentar para deixar o mercado em direção ao deserto, à sua terra. Despediu-se de seu amigo etíope Hailé, com quem trocava mercadorias que trazia da Líbia, Argélia e Marrocos, por outras vindas do oriente, como seda chinesa e especiarias da Índia e do Sudeste Asiático.

Naquele dia Hailé lhe fez um pedido especial, o qual não podia negar. Guiar até a costa mediterrânea um cidadão francês, um missionário cristão que trabalhava no Afeganistão e fora expulso pelos talibãs. Queria ir viver na Argélia ou Tunísia, assim estaria próximo às suas origens. Moussa não teve como negar, apenas disse ao francês que a travessia do deserto era longa e difícil. Ele seria seu protegido, segundo a tradição tuaregue, mas deveria seguir fielmente as suas instruções. Tudo acertado, os dromedários abastecidos das mercadorias adquiridas, água e proventos param se alimentarem durante a viagem, partiu em direção ao noroeste, em direção às montanhas e dunas do Saara.

A caravana seguia com Mussa na dianteira, sua mulher ao lado direito e não atrás, o que mostrava o profundo respeito que ele, contrário ao ideário muçulmano, tinha por sua companheira. O francês seguia ao lado esquerdo. Os demais iam entremeados aos camelos e seu filho fechava a retaguarda.

Durante a viagem Moussa ia conversando com o francês que não era afeito a este tipo de viagem, e lhe fazia todo o tipo de pergunta, as quais lhe explicava com detalhes tentando satisfazer a curiosidade do seu hóspede. Dizia – aqui os hóspedes cumprem as mesmas rotinas de todos: trabalham, descansam, comem e montam guarda nas paradas, sem diferença entre si.

O francês lhe perguntou – todos dizem o deserto transforma as pessoas. É certo? Moussa respondeu – quando você chegar ao destino, com certeza será outro homem.

Cavalgar um camelo não era uma tarefa simples para o hóspede, que dizia que o corcoveio do animal o deixava com tonturas. Moussa comentou que cavalgar um camelo é parecido com atravessar as ondas do Mediterrâneo em um barco pequeno. Era um sobe-desce constante que poderia marear quem não estava acostumado.

E assim a viagem ia transcorrendo, com Moussa ensinado ao seu hóspede os segredos do deserto – quando pressentir uma tempestade de areia deite os camelos em círculo em torno dos integrantes da caravana. Fique parado sem deixar que os animais se assustem, esperando a dificuldade passar. Se o dia estiver muito quente e ficar muito difícil a caminhada, inicialmente desmonte do animal e siga caminhando o mais devagar possível. Quando isto não for mais possível, pare se deite com o animal e fique o mais imóvel possível para não gastar energia. Se lhe faltar energia, quando a noite chegar sangre a jugular de sua montaria e sorva um pouco do sangue. Vá aos poucos para não matar o animal.

Quando já estavam em território sudanês, pararam na encosta de uma duna próxima a um oásis. Moussa não gostava de parar em oásis, pois sempre tinham outras caravanas e pessoal vinha bisbilhotar quem era, para onde iam e o que levavam. Ficava a certa distância e só iam para recolher água, tâmaras e outra coisa disponíveis que necessitavam. Enquanto preparavam algo para comer: sêmola de trigo com tâmaras, um ragu de carne de cabra temperada com um massala etíope que aprendera com Hailé e pão ázimo. De repente o francês chama a atenção de Moussa para uma poeira que se levantava no horizonte longínquo, e que avançava por entre as dunas existentes.

Uma tempestade de areia, perguntou o francês. Moussa olhou e respondeu rápido – não, é uma caravana – e chamou o filho – pegue nossa proteção, pediu. O filho trouxe dois fuzis AR15. O francês olhou aquilo assustado quando Moussa o tranquilizou – no deserto é preciso ter proteção, só os deuses não resolvem. Podem ser salteadores. Passou o comando da comida para a mulher e ficaram os três observando a caravana. Ela vinha em direção ao oásis num passo lento e, à medida que iam avançando a poeira ia aumentando. Ventava e a luminosidade do dia ofuscava um pouco sua visão. E a caravana vinha. Estavam longe, escondidos pelas dunas mais altas que havia no horizonte. E a caravana avançava. A areia levantada pelo vento também ia aumentando. Moussa comentou – é grande, tem muitos animais. Pede ser o exército ou rebeldes que habitam essa região. E a caravana vinha, até que surgiram no cume de uma duna ainda longe de onde estavam. Os dromedários com seus cavaleiros corcoveavam durante o andar. O mesmo corcoveio que fazia mal ao francês. E aquele sobe-e-desce se repetia num moto contínuo, de maneira monocórdica. E avançava. À medida que iam se aproximando podia-se vislumbrar o quão grande era a caravana. Moussa levantou-se e foi guardar as armas. O francês não entendeu seu gesto e Moussa disse – são mercadores que vem de muito longe, provavelmente do Mali ou do Niger, por isso traziam muitos animais para transportar suas mercadorias e seus sustentos. Também são imazighen (homens livres). E a caravana avançava sempre no mesmo passo. A única diferença era o tamanho e a quantidade de animais que, agora mais perto era possível distingui-los melhor. Passou ao largo deles apenas seu chefe acenando em cumprimento. Próximo ao oásis o chefe da caravana fez um sinal que era ali que eles acampariam. Neste momento um som meio caótico que encheu o ambiente ao redor. Os animais foram se juntando e seus cavaleiros fazendo com que dobrassem as pernas dianteiras para que pudessem descer. O lugar ficou tomado de camelo e gente e, quando todos os animais estavam deitados com as pernas dobradas o som parou de imediato.

Moussa olhou para o francês e disse: tenho absoluta certeza que Maurice Ravel quando compôs seu bale Bolero, se inspirou numa caravana como essa.

Vamos comer.

.oOo.

Mogli Veiga, engenheiro.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora