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8 de outubro de 2016
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10:00

O gato cuidador e o autorretrato

Por
Sul 21
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Por Mogli Veiga

Oliveira acordou se sentindo deplorável. O day after com a ressaca de cigarro e vinho tipo colonial. O quarto estava impregnado desse cheiro. A janela estava fechada deixando a alcova nas trevas. Esticou o braço para o lado da cama procurando Naja, mas seu lugar estava vazio, ninguém ao lado dele. Estou sozinho, pensou. Será que trouxe alguém comigo para a cama ontem e Naja não gostou?

Dobrou as pernas ao lado da cama apoiando os cotovelos nos joelhos e a cabeça entre as mãos. Não enxergava nada e acendeu o abajur com certa dificuldade. Os tambores tocavam alto na sua cabeça e parecia que a qualquer momento uma bomba ira estourar dentro dela. Quando a luz se fez, notou um bilhete sobre a mesa de cabeceira:

“Mô, fui viajar. Quando acordar e se acordar, tome um banho gelado, vá até a cozinha, beba um copo d’água mais gelada que o banho, coma alguma coisa, se arrume e vá dar um passeio no parque. Levante a cabeça e tente produzir alguma coisa, nem que seja acariciar o cachorro de alguma menina bonita que passar por você. Não se preocupe você não trouxe ninguém para dividir a cama conosco. Talvez tenha sido isto a causa de sua bebedeira. Mais uma! Volto daqui a uma semana. O Peter cuida de você”.

Oliveira não gostou do que leu. Levantou-se, foi até o banheiro, olhou-se no espelho e viu uma barba desgrenhada, o rosto inchado da borracheira e os olhos vermelhos do vinho ruim. Disse em voz alta: estou pior que o Keith Richards. Sentou no vaso sanitário e viu que o gato da casa, Peter Tosh deitado sobre a chaise longue que eles tinham colocado junto aos pés da cama. Ali Peter passava a noite quando lhe era permitido. Olhava para Oliveira com comiseração. Peter tinha no olhar uma interrogação: será que sobrevive a esta?

Peter observando
Peter observando

Oliveira pensou em Naja, na sua compreensão em entender seu estado recorrente de depressão e as ultrapassagens dos limites que todos acham normal. Mais uma vez concluiu que ela o amava, pois, sempre no dia seguinte era um dia de penitências, confissões e promessas que nunca se cumpriam.

Naja, Naja, minha serpente favorita. Assim a chamava, pois ela vivia dando-lhe mordidas e cobrando mudanças, mas sempre enrolada nele quando estavam juntos, e ele sempre quando falava dela repetia que ela uma cobra não peçonhenta.

Olhou mais uma vez ao espelho e ficou por minutos admirando a imagem que via. Este é o meu autorretrato. A mais pura expressão da decadência humana. O inverso de Dorian Grey. E não adianta querer vender minha alma. Ela não tem valor, nem o diabo compra. Deu um arroto e sentiu o mesmo cheiro do quarto.

Olhou sobre a pia, pegou um batom vermelho da Naja e escreveu no espelho: Autorretrato. Eu tenho uma semana, tomou um banho, se arrumou e saiu. Passou na padaria para comer algo e se foi…

Uma semana depois recebeu uma mensagem no seu whatsapp: “Mô chego hoje à noite, você me pega?” Lógico que ele, depois de uma semana de abstinência…, não ia recusar.

No caminho para casa disse para ela: não se assuste com a mudança que fiz em casa! Naja já havia estranhado sua mudança pessoal, na roupa, no cabelo, na cor dos olhos. Era como ela estivesse vendo aquele homem pela primeira vez, um homem que nunca havia provado um vício, nem socialmente, mas não disse nada. Guardou sua curiosidade para quando eles chegasse em casa.

Saíram do elevador e Oliveira disse: feche os olhos e só abra quando eu disser. Entraram e ele pediu para que ela fechasse a porta e abrisse os olhos. Assim ela fez e para sua surpresa havia um espelho pendurado na porta com os dizeres em vermelho do mesmo batom: Esta pessoa que você está olhando é você. Ela lhe parece bem? Naja voltou-se para ele com uma grande interrogação. Ele pegou seu braço e a guiou pela casa.

Na entrada da cozinha havia outro espelho pendurado no portal: Se você não sabe dirigir fogão, mantenha-se afastado.

No caminho para o quarto havia um lavabo no corredor com outro espelho: Lave as mãos, pois suas partes íntimas só interessam a você.

Na porta do quarto, outro espelho: Área restrita. Só entre se for CONVIDADA (maiúsculas). No banheiro Oliveira havia deixado o início de tudo. No espelho que tomava toda a parte superior da pia, no canto inferior direito lia-se: Autorretrato.

A saga dos espelhos continuava. Na porta do escritório onde passavam grande parte do tempo: lendo, ouvindo música, escrevendo ou simplesmente fazendo sexo sobre o pequeno sofá, outro: Se você não tem vícios, vá para um templo religioso.

Naja não sabia o que dizer, simplesmente o abraçou e o beijou. Foram se despindo, o sexo já produzindo seus frêmitos, quando ela colocou a mão em sua boca e disse: não lhe mostrei o melhor. Saíram para corredor dos elevadores e ela a mostrou. Na porta pelo lado de fora havia outro espelho bem pequeno onde se lia: Deixai aqui todos os seus pruridos, ó vós que entrais e seja feliz.

.oOo.

Mogli Veiga, engenheiro e…


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