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21 de setembro de 2016
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11:33

Conversas sem fim e chopes

Por
Sul 21
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00951 Rio de JaneiroPor Mogli Veiga

Doutora, hoje nosso encontro mais uma vez, será diferente. Vamos nos encontrar naquele bar onde já fomos uma vez. Vamos dialogar diante de um chope.

Ok, você decide, mas o chope não está incluído no preço da sessão.

No início da noite nos encontramos onde combinamos. Minha terapeuta já havia comandado o chope, um IPA. Nos cumprimentados, puxei a cadeira e sentei junto à janela voltado para a entrada do bar.

Ela imediatamente comentou: nunca se senta próximo à porta e muito menos de costas para ela. Esse lema não coaduna com um outsider como te consideras.

Você sabe que os outsiders não são seres estranhos, apenas se dão o direito de questionarem o sistema racional e seguirem seus próprios instintos, desejos ou o nome que quiser dar.

Ok, mas vamos ao tema da conversa. Como foi a viagem? Conte-me desde o início. Não precisa ser minissérie. Fez tudo o que estava programado?

Minha cara, não existe programa. As coisas vão acontecendo entre um chope e outro. Você sabe que sofro do mal da solidão literária. Gosto de estar sempre conversando com alguém, mas não em conjunto, um de cada vez. Às vezes são conversas que se prolongam, como a nossa. Elas terão um final, mas sempre posso interromper e iniciar conversa com outra pessoa.

Quando resolvi viajar, no programa rever minha terra, estava conversando com o Mário Vargas Llosa sobre a cultura do nosso tempo (Civilização do Espetáculo – Objetiva- 2012), como ela está se imbecilizando, perdendo terreno para “as orelhas dos livros”. Foi então que os corvos começaram a tomar conta do céu. Fui então falar com o Ernani Ssó (Corvos na Chuva – Jovens Escribas – 2016), pois ele descreve, magistralmente, a senha predatória dos corvos, implacáveis com suas vítimas. Fomos acostumados com o símbolo da morte como sendo aquela figura indecifrável, coberta dos pés à cabeça e sempre empunhando o gadanho que ceifa as vidas. Mas discordo totalmente, o símbolo da morte são os corvos, que ficam do alto à espreita da vítima. De vez em quando sobrevoam o local. Atacam em bando. São astutos, sempre um deles pousam próximo à refeição para certificar se ainda há um espasmo de vida. Caso contrário parte para o ataque, sempre começando pelos olhos, pois se a vítima não está totalmente sem vida, não poderá apreciar seu perecimento. Esta foi uma conversa que foi até o fim. Como no espaço hitchcockiano de “Os Pássaros”, eles também estavam escurecendo as noites do Planalto Central e, para não dar chance aos corvos, alcei a perna no pingo e resolvi partir. Não poderia ir sozinho e, para manter a mesma lógica da conversa anterior, resolvi levar comigo meu amigo Ernest, sim o Hemingway e seus contos (Contos – Civilização Brasileira – 1993).

Não consigo imaginar como uma pessoa possa ficar tempo, horas, em um aeroporto, ou num consultório médico, sem ter um amigo para conversar e não ficar teclando seu smartphone ou lendo revistas caras e vejas, de seis meses atrás e com as capas ensebadas. Nessas horas me lembro da conversa interrompida com o Llosa. E lá me fui.

Entre um chope e outro, teve surfe na Prainha, onde o que menos se olha são os meninos descendo suas ondas, mas suas acompanhantes que ficam sentadas na areia em tremenda solidão, sem um amigo para conversar. Não adianta puxar papo porque elas não falam a minha língua, com raras exceções. Teve caminhada no Pico da Tijuca, garçom mais um e na pressão. Visita aos sítios olímpicos, com destaque para o mural do Kobra na zona portuária. Uma obra prima. Llosa, você deveria ver isto, pois o popular também pode produzir arte.

Como o chope está se tornando o personagem principal, abro um parêntese para um esclarecimento sobre o tema. Chope, como todos sabem (ou acham que sabe), é um fermentado não pasteurizado composto de água (não serve aquela com cheiro e cor), cereais e LÚPULO (em maiúsculas porque tem produtor que não conhece o que é isso). O chope como toda bebida especial, tem regras para seu consumo, do tipo: a temperatura correta, que não deve ser quente nem estupidamente gelado (como dizia meu pai, chope ou cerveja estupidamente gelada á para estúpido); deve ter um colarinho (espuma) de mais ou menos quatro centímetros ou três dedos da mão, pois esse colarinho inibe a troca de calor entre o meio ambiente e o ambiente do meio do copo, além de preservar o buque da bebida (sim chope tem buque, você nuca cheirou um chope?); deve ser servido num copo chamado caldereta de 300 ml (a parte superior mais larga que a inferior, fundo groso e paredes finas, como os antigos baldes de metal das nossas avós), também pode ser num copo do mesmo formato, porem de menor tamanho (150 ml); este é chamado de chope garoto; chope também tem ciência no pedir – garçom um chope na pressão, com colarinho ou na manteiga (forma arcaica), onde a espuma é quase uma manteiga que se pode passar no pão com uma faca ou colocar um palito de pé sobre ela e ele ficará na mesma posição. Este é o chope tradicional carioca, uma instituição tombada pelo Patrimônio dos amantes da boemia e da Bohêmia (1ª cerveja fabricada no Brasil em 1853. Onde? Em Petrópolis). Sei que deve ter gente torcendo o nariz, não leu até aqui e sairá dizendo que este ser ignóbil não sabe que existem outros tipos. Sim meus amigos existem sim, eu mesmo nesta conversa estou tomando um IPA, você leu? Estou explicando a tradicional forma de beber um chope tipo pilsen na cidade definida pela Fernanda Abreu:

Rio 40 graus
Cidade maravilha
Purgatório da beleza e do caos
Capital do sangue quente do Brasil
Do melhor e do pior do Brasil…

Voltando, entre um chope e outro, um dia fui almoçar com amigos reais e concretos. Fomos comer uma japonesa, uma comida japonesa bem entendida. Ao final, no lugar de mais um chope pedimos um café, mas o restaurante não serve essa iguaria. Minha amiga falou para tomarmos o café no estabelecimento da frente, do outro lado da rua. Olhei pra o local e o nome me chamou a atenção: Argumento. Achei interessante e fomos ao café, que na verdade está dentro de uma livraria.

Ao chegar a frente à vitrine uma capa vermelha me chamou a atenção e eu que adoro vermelho, parei e fiquei admirando. Na capa um rosto de uma linda mulher vestida de soldado. Seu olhar penetrante olhava para o lado como se estivesse olhando para o infinito, para o vazio do seu interior, ou para seu passado distante e perdido, ou simplesmente olhava o povo que passava na calçada. Entrei, tomei-a em minhas mãos e fui para o café. Acompanhou-me a mulher que descobriu a soldado da capa, Svetlana Aleksiévitch (A Guerra não tem Rosto de Mulher – Cia. das Letras – 2013). Sentei e ela começou a conversar comigo. Falou só de mulheres. Mulheres russas que foram à guerra. Não eram generais, estrategistas ou heróis masculinos onipresentes nos relatos de guerra. Eram apenas mulheres que perderam suas vidas, não literalmente, mas tudo: suas famílias, seus sonhos, seus amores, suas companheiras de farda, restou apenas o vazio do depois. Eram muitas. Sufocaram-me com suas histórias trágicas. Passamos a tarde e parte da noite juntos. Eu apenas ouvia, não tinha como interagir.

Após mais uns chopes e agora cerveja Bohêmia, em Petrópolis, chamei de volta meu amigo Ernest. Contei-lhe que aquelas mulheres seria uma conversa longa, que demoraria algum tempo para conseguir digerir o que foi a “luta a por uma pátria livre”. Essas mulheres se transformaram em outsiders forçadas.

Voltei para casa e ao chegar encontrei um argentino, Julio Cortázar (Rayuela – Alfaguara – 2014), que há tempos me esperava para uma conversa. Com certeza esta terá fim.

Apesar da conversa triste com aquelas mulheres, fico feliz por pode poder ouvir, através de sua descobridora, suas histórias, e isto as redime. Lembro então o que disse Chris McCandless (Na Natureza Selvagem – Jon Krakauer – Cia. das Letras – 1996): “a felicidade só é completa quando pode ser compartilhada”.

E você abandonou essa “cachaça”? Perguntou-me minha interlocutora.

Doutora vou lhe responder usando uma frase de John Lennon: “You may say I’m a dreamer / But I’m not the only one / I hope someday you’ll join us / And the world will be as one”.

Garçom mais dois chopes.

.oOo.

Mogli Veiga, engenheiro e…


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