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23 de julho de 2016
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10:05

As classes animais

Por
Sul 21
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cidade interiorPor Mogli Veiga

Era uma cidade pequena e típica do interior, mas muito rica, pois vivia da renda das estâncias que exploravam a pecuária na região. Ali habitavam apenas as mulheres, as crianças, os velhos e os empregados das estâncias destacados para fazerem os serviços gerais das famílias dos proprietários das terras. Também viviam os pequenos proprietários do comércio local. Os donos das estâncias passavam a semana nas suas fazendas junto com os filhos homens já adultos e seus empregados. Só, vinham para a cidade nos finais de semana para ver o restante da família.

Era uma cidade totalmente plana, cujo plano urbanístico se resumia em uma praça circundada pelas residências dos estancieiros e mais afastada as residências das famílias dos pequenos comerciantes e dos empregados dos estancieiros.

No em torno da praça estavam localizados: a igreja onde os padres atendiam às senhoras beatas cotidianamente e recolhiam os óbulos no fim de semana após um sermão especialmente preparado para tanto; a agência do Banco do Brasil; uma loja de armarinho; um misto de armazém, fruteira e açougue; uma sorveteria que só vendia sorvete no verão e uma pequena pensão que atendia os caixeiros-viajantes. No perímetro externo da praça existiam bancos onde, aos finais de tarde os residentes usavam para ficar mateando e jogando conversa fora. Nos finais de semana, os jovens usavam para se encontrar, conversar, namorar e outros assuntos.

Uma vez por mês todos se reuniam no CTG, cujo patrão do CTG se chamava Ataíde, para uma churrascada, onde a cada vez, um dos proprietários cedia uma cabeça de rês ou umas ovelhas para o grande encontro. Ali se tomava mate, comia, cantavam e dançavam durante todo o dia. Ataíde era um mulato forte nos seus 70 anos. Dizia-se forro, pois foi peão durante toda a vida e, quando não conseguia mais montar, isto é, já era um veterano, foi designado patrão do local recebendo pequeno soldo que era partilhado por todos os estancieiros da região. Nunca tinha saído da vila e era um grande conhecedor de carne e melhor assador. Dizia sempre que um cozinheiro se faz, mas um assador se nasce.

Como em todo local que tenha comida, principalmente carne, é sempre um bom local para se reunir a população canina sem dono. Enquanto a churrascada se desenrolava, um grupo de cães fica sentado um pouco afastado da mesa e da churrasqueira. De vez em quando, ouviam-se uns pequenos latidos lamurientos e alguma rosnada, mas sem muita balbúrdia. Do lado de fora do cercado do CTG, reunia-se um grupo maior que passavam o tempo todo pulando, latindo, correndo de um lado para outro e só se aquietavam quando Ataíde vinha até o portão e dava um grito, mas isto durava muito pouco tempo.

O grupo interno, mais íntimo dos convivas era composto por um pastor alemão, não muito novo, mas ainda parecendo o macho alfa do grupo. Ficava sentado apenas observando os movimentos. Uma cadela labrador, que embora maltratada ainda guardasse o brilho da pelagem amarela. Ela ficava sentada ao lado do pastor como que aguardando uma ordem. Os demais se colocavam sempre atrás dos dois. Vez ou outra um se afastava tentando chegar próximo à mesa, mas o pastor meio que rosnava em surdina e o(a) audacioso voltava ao seu lugar. O pastor sabia que no fim, quando todos fossem embora, Ataíde lhes dariam as sobras do repasto. Aguardavam pacientemente. Enquanto isso o grupo de fora do cercado fazia com que Ataíde mais uma vez fosse por ordem na casa.

No final, quando o sol já indo embora para iluminar e aquecer o outro lado do mundo, um dos convivas pegou um osso do prato, virou para onde estavam os cuscos e chamou acenando com o osso na mão. Poderia ter lançado na direção deles, mas sua necessidade de mostrar superioridade aguardou que algum chegasse ate ele para pegar o osso de sua mão. O pastor olhou para a cadela labrador e deu um pequeno latido. Ela levantou-se e foi em direção ao osso abanando o rabo. Recolheu e voltou para onde estava seu grupo e depositou o osso, que tinha ainda um pedaço de carne, junto do pastor. Os outros se assanharam e ela deu uma rosnada para eles como que dizendo que ela era a preferida dos fornecedores da carne e do pastor. Este comeu o carne que ainda existia e deixou o osso que passou a ser triturado pela sua fiel escudeira.

O estancieiro ficou admirado e revelou ao Ataíde sua admiração de como eles eram comportados e pelo que via, tinham uma organização: primeiro come o chefe, depois a sua escudeira e se sobrar os outros podem dividir o repasto.

– Ataíde, esses bichos tem nome?

– Sim dotô, o macho é o Pastor e líder do bando. A cadela que pegou o osso é a Classe Média e os demais, também são, porém num grau inferior.

– E aqueles fora do da cerca?

– Não se preocupe com eles, é a Periferia. Quando a gente terminar, separo as sobras de carne para os de dentro e os ossos para os de fora.

– Mas porque eles não se juntam? É tudo cachorro sem dono!

– Dotô a vida é assim, como a gente diz no campo, cada macaco no seu galho. Se misturar eles avançam em tudo e não tem controle. Os de dentro não aceitam dividir com os de fora e estes não sabem que juntos podem comer mais e melhor.

– É Ataíde, a vida é meio ingrata, mas se não for assim não funciona.

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Mogli Veiga é engenheiro e aventureiro.


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