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22 de julho de 2020
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19:44

Crises, desigualdades e os movimentos sociais – Parte I (por Mauri Cruz)

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Sul 21
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Crises, desigualdades e os movimentos sociais – Parte I (por Mauri Cruz)
Crises, desigualdades e os movimentos sociais – Parte I (por Mauri Cruz)
Ato de comunidades quilombolas, assentamentos urbanos e população de rua em frente à Prefeitura de Porto Alegre, denunciando desmonte de políticas sociai em meio a pandemia do novo coronavírus. Foto: Luiza Castro/Sul21

Mauri Cruz (*)

O Brasil vive um cenário de graves crises. A principal delas é a crise ambiental, mais grave que a sanitária porque, contra esta, não há vacinas e exige mudanças radicais e urgentes. Os sintomas estão por toda parte. Fenômenos extremos crescem em quantidade e intensidade. Tratado como natural, o “ciclone bomba” que acometeu o Rio Grande do Sul somou-se a uma das maiores secas, a nuvem de gafanhotos e a oscilação brusca das temperaturas no inverno gaúcho. Mas como sapo cozido em fogo brando a população sente o aquecimento, mas não reage.

Esta crise climática tem sido ampliada com o desmonte das políticas de proteção aos povos e territórios amazônicos, pelo desrespeito ao Código Ambiental e pela redução de financiamentos para a implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, todas medidas do Governo Federal. Pior que isso só o incentivo explicito do Bolsonaro a grilagem de terras públicas para a mineração, para a pecuárias e agricultura extensiva, o desmonte dos órgãos federais de controle e a hostilização das OSC e dos movimentos de defesa da floresta.

Para além dos impactos ambientais, estas políticas têm um forte impacto na economia brasileira ancorada, ainda nos governos anteriores, no agronegócio. Não por outro motivo, setores das grandes empresas apelam ao Governo Federal para que mude sua política e, de forma envergonhada, o vice Mourão faz as vezes de profeta de políticas de proteção que nunca serão implementadas.

Neste sentido, a crise ambiental aprofunda a outra crise, a econômica, que já era grave e ganhou contornos ainda mais trágicos com a pandemia. A previsão dos economistas do mercado é que a queda do PIB será algo entre 3% a 5%, o que já significaria perda de milhões de empregos, quebradeira geral das pequenas e médias empresas e redução da renda circulante no país. Mas, pela inação do Governo Federal a queda poderá chegar a 12% do PIB, uma catástrofe com inimagináveis impactos econômicos e sociais. Um tombo que irá impactar não apenas o ano de 2021, mas os próximos cinco ou seis anos. Isso sem falar no atraso do Brasil em reposicionar-se na transição tecnológica que vem redesenhando a economia mundial desde 2012.

Com as crises ambientais e econômicas a crise sanitária também foi potencializada. Sabe-se que, mais pela incompetência do Governo Bolsonaro do que pela agressividade do próprio vírus. Bolsonaro desestruturou o Ministério da Saúde e suas políticas de coordenação nacional o que levou a chamada curva epidemiológica a se estabilizar no trágico patamar de quase uma morte por minuto, ou seja, mais de 1000 mortes/dia. Mortes que atingem, na sua maioria, as pessoas idosas, os pobres, as pessoas negras e das periferias. Se não forem tomadas medidas urgentes como o lockdown (fechamento total), ampliação das medidas de proteção social, o engajamento da sociedade através de campanhas unitárias de conscientização e a implementação de ações de fiscalização eficientes para coagir os comportamentos irresponsáveis, chegaremos ao final do ano com mais de 200 mil mortos e entraremos o ano de 2021 tendo que gerenciar a pandemia e seus impactos sociais e econômicos.

Frente a este quadro desolador é inexplicável a apatia social. Apesar do crescente aumento do desemprego, das mais de 1000 mortes/dia, do isolamento social se estendendo mês a mês, das aulas virtuais e de todas as mazelas, a sociedade parece inerte. Houve alguma mobilização contra o racismo estrutural, na defesa dos direitos das mulheres, das comunidades LGBTQI+ e até das torcidas organizadas. Mas a maior parte dos movimentos e organizações sociais tem tido dificuldades em promover uma reação social capaz de pressionar o governo. A pandemia com seu lema “fique em casa” acabou servindo como uma espécie de álibi para que lideranças sociais se acomodassem e pôs em contradição a profunda desigualdade mesmo no seio dos movimentos sociais. Isto porque enquanto uma pequena parte das pessoas consegue ficar em casa porque tem casa e rendas garantidas, uma grande maioria sem renda e em moradias precárias não tem a mesma opção.

Soma-se a isso, um estranho acomodamento dos partidos de esquerda que, pelo calendário eleitoral, direcionaram quase todas suas energias para a preparação das eleições municipais, elemento central para quem deseja manter seus mandatos, aparelhos partidários e institucionais, mas que fragiliza o enfrentamento da campanha Fora Bolsonaro, Mourão e Guedes. Uma leitura possível para esta apatia é que o fenômeno Bolsonaro acabou por gerar uma área de conforto onde, tanto esquerda como direita têm seus espaços garantidos e, o centro neoliberal, consegue impor sua agenda de transformações econômicas, com a privatização da água, o esfacelamento da educação pública, a fragilização das políticas de seguridade social e do próprio papel do estado. Certo é que a pandemia pôs em xeque muitas coisas. Desde o atual modelo de desenvolvimento que descuida da preservação da vida até a fragilidade das economias sem políticas sociais eficazes. Igualmente é certo que as antigas agendas e práticas das esquerdas não tem representado uma resposta eficaz para enfrentar este novo momento da humanidade.

Frente a este quadro, aquela parcela da militância social que segue tendo um pensamento crítico e acreditando que outro mundo realmente é possível, se pergunta qual seu papel nesta conjuntura? Que modelo de sociedade devemos defender? Quais estratégias que devemos implementar?

Não tenho respostas prontas para estas questões. Defendo, como já dito em textos anteriores, que a pandemia abriu algumas janelas de oportunidades quando exigiu que os governos nacionais tomassem medidas de isolamento com proteção social, com restrição de suas atividades econômicas não essenciais e o fortalecimento das medidas de proteção da vida. Uma ruptura de paradigma num mundo capitalista onde o lucro está acima das pessoas. Esta oportunidade foi bem aproveitada por vários países capitalistas que aceleraram seus processos de transição econômica, social e ambiental, justificando o redirecionamento de recursos para áreas e temas que irão reposicioná-los num mundo pós-pandemia [1]. Mas esta janela de oportunidade ainda não foi compreendida pela esquerda internacional e nem pela esquerda brasileira. Sobre isso falaremos no próximo artigo. Sigamos juntas e juntos, unidas/os e na resistência.

(*) Advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de direito à cidade e mobilidade, membro da Diretoria Executiva do Instituto IDhES, da Diretoria Executiva da Abong e do Conselho Diretor do CAMP.

[1] Tenho resistido a usar o termo pós pandemia porque acho que não haverá um pós e sim um ambiente em que o mundo irá aprender a conviver com o covid-19 e suas várias derivações, mas o termo ajuda a pensar este novo anormal.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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