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14 de dezembro de 2018
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21:29

Os Direitos Humanos e o pé de goiaba

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Os Direitos Humanos e o pé de goiaba
Os Direitos Humanos e o pé de goiaba
Futura ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Marcos Rolim (*)

Crianças possuem amigos imaginários, fantasiam e elaboram conexões mágicas. Damares foi criada em uma família profundamente religiosa e vivia em uma casa paroquial. Quando criança, deve ter ouvido muitos relatos de aparições de Jesus e de milagres os mais variados. Por que razão, então, alguém haveria de criticá-la por conta da visão de Jesus em um pé de goiaba?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 70 anos na segunda-feira (10). Na data, eu estava já no nono dia de internação hospitalar, tratando uma infecção bacteriana pós-cirúrgica em meu joelho. Não pude, por isso, acompanhar mais de perto os eventos ou ler os textos que gostaria de ter lido. A dor constante não é apenas debilitante; ela altera nossas faculdades e nos coloca diante da noção de que algo grave está ocorrendo em nosso corpo para além das possibilidades que temos de decidir. Muitas pessoas no Brasil não  compreendem o que são Direitos Humanos. Para uma parte delas, mesmo a possibilidade de compreensão foi interditada. Há formas simples, não obstante, de situar o tema.

Promover os Direitos Humano é assumir o objetivo de diminuir a dor no mundo. Políticas orientadas pelos Direitos Humanos têm em conta esse desafio consequencialista, embora lidem com princípios a serem observados incondicionalmente. Em todo o mundo, pessoas hospitalizadas recebem analgésicos para suportar suas dores. Em milhões de vezes, são tratadas com opiáceos por longos períodos, muito frequentemente com morfina. De volta a suas vidas normais, elas não se tornam dependentes dessas substâncias. A droga lhes foi extremamente necessária em uma circunstância especial onde uma dor era insuportável. Não havendo mais a dor, também a necessidade da droga é removida, como regra. Essa experiência tão conhecida não combina com o senso comum de uma certa “teoria farmacológica” pela qual haveria certas substâncias que produzem a dependência, independentemente dos contextos de uso.

A grande maioria dos usuários de drogas em todo o mundo não se torna dependente delas. Os estudos estimam que 90% dos usuários fazem uso recreativo das drogas, o que significa que o fenômeno da dependência não pode ser compreendido como uma propriedade das substâncias, mas como o resultado de uma interação entre sujeito e substância. É possível que o uso de drogas não seja, no mais, a causa de graves problemas sociais, mas, antes, um sintoma de uma dor não-física que se tornou insuportável.

Uma política de drogas eficaz deveria ser capaz de remover essa dor. Tornar as drogas ilegais, pelo contrário, é um dos caminhos certeiros para aumentar a dor no mundo. As evidências mais impactantes em defesa dessa afirmação podem ser encontradas no excelente “Na fissura, uma história do fracasso no combate às drogas”, livro de Johann Hari lançado recentemente no Brasil (Cia das Letras, 527 pág.).

No hospital, fiquei amigo de uma jovem cubana, servidora responsável pela limpeza do quarto. O marido obteve autorização do regime para vir ao Brasil, mas ela e o filho pequeno não. Na primeira oportunidade que teve, fugiu com a criança em uma história daquelas que poderiam ser contada em filme. Vive no Brasil na condição de refugiada e, embora tenha formação técnica, não fez qualquer reclamação quanto ao seu trabalho. Aprendeu que todo o trabalho é digno e que as pessoas não valem mais ou menos pelo ofício que têm ou pelo que ganham. Disse-me que levava uma vida tranquila em Cuba, sobretudo com segurança, mas que ela e os jovens não têm perspectivas em seu país e que todos têm o direito de perseguir seus sonhos. Fiquei pensando que minha nova amiga sabia exatamente a importância dos Direitos Humanos. Uma parte desses direitos lhe foi assegurada, outra parte lhe foi miseravelmente sequestrada. No Brasil, a posição dominante na esquerda denuncia a política xenofóbica de Trump e mostra os resultados desumanos colhidos quando se pretende proibir a imigração, mas não considera uma violação básica a existência de um regime como o cubano que não permite a emigração.

Assim, as coisas ficam confusas. Em Milagres, interior do Ceará, policiais militares impediram um assalto a um banco, matando os assaltantes e seis reféns. O governador, em sua primeira declaração pública sobre o fato, considerou a operação “exitosa”. Afirmou, também, que achava estranho a presença de reféns de madrugada em um banco. Depois da repercussão desastrosa dessa declaração, sua excelência mudou de tom e determinou a apuração dos fatos. Agora adivinhem qual o partido do governador? Trata-se de Camilo Santana, do PT. Bem, aí a confusão sobre Direitos Humanos pediu para se instalar e entrou duas vezes na fila.

Falando em confusão e em milagres, a composição do governo Bolsonaro terá à frente da pasta dos Direitos Humanos a pastora Damares Alves. Confesso que nunca tinha ouvido falar nela. Não deixa de ser impressionante que, diante de tantas violações aos Direitos Humanos, a primeira proposição da nova ministra seja a criação de uma “bolsa” a ser paga às mulheres que decidirem não interromper a gravidez resultante de estupro. A pregação da nova ministra relatando a visão que teve, quando criança, com Jesus subindo em um pé de goiaba foi um dos temas mais comentados nas redes sociais (veja a fala na íntegra aqui: https://goo.gl/q9wC8f ). Após os memes e as brincadeiras sobre a história, a ministra lembrou que o episódio, ocorrido quando ela tinha 10 anos, estava relacionado à experiência de vitimização por abuso sexual que ela havia sofrido.  A própria Damares, assim, foi uma vítima de grave violação dos Direitos Humanos. Essa circunstância trágica passou a ser apresentada como uma espécie de “habeas preventivo” contra qualquer exame crítico sobre o que a pastora disse.

Crianças possuem amigos imaginários, fantasiam e elaboram conexões mágicas. Damares foi criada em uma família profundamente religiosa e vivia em uma casa paroquial. Quando criança, deve ter ouvido muitos relatos de aparições de Jesus e de milagres os mais variados. Por que razão, então, alguém haveria de criticá-la por conta da visão de Jesus em um pé de goiaba? Quem prestar atenção à pregação de Damares, entretanto, verá que ela não se refere ao episódio como uma fantasia infantil. A pastora diz claramente: “Jesus quer ter experiências extraordinárias com crianças” (…) “Naquele pé de goiaba aconteceu um milagre: a menininha que Satanás quis esmagar aos 6 anos de idade foi transformada” (…) “Algumas pessoas precisam saber que Jesus Cristo sobe em pé de Goiaba”, etc…

A visão foi relatada pela pastora, assim, como uma experiência real, desejada por Jesus, o que aponta para uma das curiosidades da fé. Fora de uma perspectiva religiosa, é comum que visões sejam sintomas psiquiátricos ou efeitos de certas drogas alucinógenas. Nada contra visões, ainda mais se a consequência delas for salvar a vida de alguém ou diminuir as dores no mundo.  Assusta um pouco, entretanto, que a gestão do País seja entregue a pessoas que não distinguem a realidade das suas visões.

No caso concreto, importa saber, efetivamente, qual a política pública proposta pela ministra para o enfrentamento do abuso sexual contra crianças e adolescentes. A fé não oferece qualquer resposta ou garantia contra as violações; pelo contrário, comumente torna mais difícil que as vítimas compreendam a realidade do próprio abuso, o que se observa inclusive com vítimas adultas como na reação típica das mulheres violadas por João de Deus, por exemplo. A pedofilia é prática comum também nas Igrejas e a quantidade de casos de abuso praticados por padres e pastores em todo o mundo constituem as mais revoltantes evidências disponíveis. A ministra também não terá nos textos sagrados o apoio que necessita para a construção dessa política.

Aliás, não há na Bíblia uma única menção à “pedofilia”, porque aqueles que escreveram os textos sagrados viviam em um mundo onde adultos casavam com crianças e onde não havia qualquer espanto diante dessas práticas. A ideia de que as crianças possuem direitos específicos e que qualquer relação sexual de um adulto com uma criança constitui um crime repugnante é uma conquista moderna dos Direitos Humanos, não da religião. Mesmo o respeito às crianças é uma novidade em termos históricos.

Uma visão bíblica literal poderia sustentar uma tradição oposta como se afirma em Levítico 26:27-29, com a promessa do castigo divino a todos os que não obedecerem ao Senhor, o que envolve a maldição de comer a carne de seus próprios filhos e filhas; ou no Salmo 137:9, onde se conhece o verso vingativo: ” Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras”; ou em Êxodo 11:12, quando, para tentar convencer o Faraó, Deus mostra sua ira com pragas terríveis que culminam na morte de todos os primogênitos egípcios; ou em II Reis 2:23, onde se relata o episódio em que Eliseu ouviu crianças zombando dele porque era calvo. Então, ele as amaldiçoou em nome de Deus e duas ursas saíram do bosque e despedaçaram quarenta e dois garotos, etc.

Para enfrentar o abuso sexual, será preciso um programa consistente de educação sexual nas escolas, desde a infância. As crianças devem ser informadas de que alguns adultos podem tentar se aproveitar delas, tocando-as de forma inapropriada, e que situações do tipo devem ser relatadas imediatamente a outros adultos capazes de defendê-las. Os professores, por seu turno, devem ser capacitados para identificar precocemente possíveis casos de agressões e abusos contra crianças praticados no âmbito das suas famílias, referenciando-os na rede de atenção básica para uma efetiva prevenção. A ministra, entretanto, não irá apresentar qualquer proposta nesse sentido. O silêncio sobre a sexualidade é a sua resposta no que tange à educação das crianças e o “respeito aos valores da família” será um mantra funcional para proteger os abusadores. Nesse particular, as concepções da nova ministra podem ser especialmente perigosas.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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