A Nicarágua é, hoje, um lugar onde não há garantia alguma e onde qualquer um pode ser metralhado pelos grupos paramilitares a soldo do regime. Em apenas 3 meses, pelo menos 360 pessoas foram mortas por encapuçados que desfilam em camionetes com armas de guerra e bandeiras sandinistas.
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Marcos Rolim (*)
Em 1959, a temida Guarda Nacional do ditador Anastácio Somoza matou 4 estudantes na cidade de León, na Nicarágua. Durante muitos anos, os democratas lembraram o Massacre Estudantil, com atos públicos no dia 23 de julho, data do trágico evento. Episódios como aquele estimularam a formação, em 1962, da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que chegaria ao poder em 1979, em um processo revolucionário. Os sandinistas permaneceram no comando do país até 1990 quando foram derrotados nas eleições presidenciais por Violeta Chamorro, que havia integrado a junta revolucionária e, logo depois, rompido com os sandinistas.
Após 16 anos de governos de perfil liberal, os sandinistas voltaram ao poder, vencendo as eleições de 2006 com base em uma aliança com a direita mais feroz, o que inclui antigos “contras” e Arnoldo Alemán, um dos políticos mais corruptos da região. Desde então, Daniel Ortega se mantém no poder, tendo sido reeleito em 2011 e 2016 em eleições suspeitíssimas, para se dizer o menos. A vice-presidência é ocupada por sua esposa Rosario Murillo.
A Nicarágua é, hoje, um lugar onde não há garantia alguma e onde qualquer um pode ser metralhado pelos grupos paramilitares a soldo do regime. Em apenas 3 meses, pelo menos 360 pessoas foram mortas por encapuçados que desfilam em camionetes com armas de guerra e bandeiras sandinistas. Uma das vítimas foi a estudante brasileira Raynéia Gabrielle Lima, alvejada na noite da última segunda-feira quando retornava para sua casa em Manágua. Os feridos à bala são mais de dois mil, há 261 pessoas desaparecidas e 738 sequestradas por civis armados e policiais, segundo a Associação Nicaraguense pelos Direitos Humanos (ANPDH). A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh) responsabilizam o governo Ortega por “assassinatos, execuções extrajudiciais, maus tratos, tortura e prisões arbitrárias”.
Na capital, Manágua, centenas de estudantes seguem entrincheirados na Universidade Nacional Autônoma (UNAM) e, em Masaya, cidade símbolo da resistência indígena à ditadura de Somoza, a população declarou “território livre do governo”, escolheu uma junta administrativa, bloqueou estradas e ergueu barricadas. Sustentam a luta pela antecipação das eleições pacificamente, mas Ortega os chama de “golpistas” e se aferra ao mandato que só terminará em 2021.
360 mortos em 3 meses! Em um país com pouco mais do que 6 milhões de habitantes, menos que a população da cidade do Rio de Janeiro. Nem Somoza nem qualquer outra ditadura no continente mataram tantos em tão pouco tempo. Quem leu o artigo “A Piñata de Ortega”, de Eric Nepomuceno em Carta Capital (https://goo.gl/cMncip), deve ter se horrorizado ainda mais. Em síntese, o que se desvela ali é um processo de apodrecimento do sandinismo pela mais deslavada corrupção, o que envolveu a transferência de bens luxuosos de Somoza e seus seguidores, que haviam sido nacionalizados pela Revolução, para a propriedade de líderes sandinistas, a começar por Ortega.
Ortega é um tirano de manual e, muito possivelmente, um psicopata. Ele foi acusado por sua enteada Zoilamérica de tê-la violado sexualmente inúmeras vezes. Rosário apoiou Ortega contra o depoimento da filha, mas a ação não teve sequência porque a Justiça – controlada pelos sandinistas – entendeu que o caso havia prescrito e que Ortega estava protegido pela imunidade. Ortega, aliás, reformou a Legislação que protegia as mulheres da violência, reduzindo penas aos infratores e eliminando delegacias de polícia especializadas no atendimento às mulheres. Seu regime também se aliou a grupos religiosos fundamentalistas, o que resultou na aprovação de um “Código da Família” que viola os direitos de homossexuais e transgêneros. Em 2007, a mesma liderança “revolucionária” já havia criminalizado o aborto.
No continente, José Mujica se pronunciou no Senado uruguaio, pedindo a renúncia imediata de Ortega. “Lembro de companheiros que entregaram suas vidas na Nicarágua lutando por um sonho (…) e sinto que algo que foi um sonho se desvia e cai na autocracia e entendo que aqueles que ontem foram revolucionários perderam o sentido da vida, Na vida, há momentos em que se deve dizer: vou embora”, disse (https://goo.gl/JtmsC6). Assim como a Frente Ampla no Uruguai, o Partido Socialista no Chile e o PSOL no Brasil manifestaram sua indignação diante do regime de Ortega. Já PT e PCdoB lançaram notas oficiais. A nota do PT (https://goo.gl/gUC9yM) “lamenta profundamente as mortes e eventuais violações de direitos humanos ocorridas”. Após essa fantástica frase, se afirma que “os enfrentamentos de hoje na Nicarágua a um governo legítimo e democraticamente eleito não são uma novidade nas Américas e tampouco um fenômeno espontâneo. Já houve questionamentos violentos a governos do campo progressista antes, como as situações semelhantes na Venezuela, na Bolívia, Honduras, Paraguai e mais recentemente no Brasil, onde houve um golpe parlamentar, jurídico e mediático”.
A nota do PCdoB (https://goo.gl/KpQx5r) não tem sequer espaço para o lamento retórico. Os comunistas se dirigem à Daniel Ortega com a expressão ”Queridos companheiros”, expressam sua solidariedade ao regime e dizem: “No Brasil também vivemos episódios parecidos, principalmente em junho de 2013. Nossa experiência e a experiência de outros povos provam que episódios como os que agora atingem a Nicarágua não acontecem por acaso e muito menos de forma espontânea”. Em síntese, PT e PCdoB apoiam Ortega. Faz tempo que ambos os partidos têm dificuldades de identificar o que é uma ditadura. Agora, dão mostras de terem perdido a capacidade de identificar assassinos.
(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)
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