Marcos Rolim (*)
O desafio de medir a eficiência do trabalho policial segue sendo objeto de debates em todo o mundo. Há, entretanto, um razoável acordo nas democracias modernas em torno da ideia de que a eficiência da polícia deve ser comprovada por resultados obtidos quanto à redução do crime, da violência e do medo. Em várias nações, se incorporou a esses indicadores também o grau de confiança da população nas polícias, um movimento importante que estimula e valoriza a interação dos policiais com os residentes.
Para se avaliar as tendências criminais e violentas e para se medir o medo da população, é preciso contar com pesquisas sistemáticas de vitimização. Assim, se evita tomar os registros policiais para o diagnóstico, já que a grande maioria dos delitos não é comunicada às polícias. O fenômeno da subnotificação criminal, conhecido como dark rate (cifra obscura), não diz respeito apenas aos delitos menos graves, como o afirmou equivocadamente, em entrevista ao Sul 21, o secretário Cezar Schirmer. Um dos crimes de maior subnotificação em todo mundo é o estupro, exatamente um dos mais graves. O tráfico de drogas – um crime que recebe tanta atenção das polícias brasileiras – não costuma produzir registros policiais, porque integra os chamados “crimes sem vítima”; no caso, uma relação comercial onde não há alguém que, por sentir-se lesado, recorra à polícia. Uma polícia que tomasse seus próprios registros de ocorrência sobre tráfico de drogas chegaria à conclusão de que o tema não teria a menor importância.
No Brasil, entretanto, os gestores insistem em produzir diagnóstico com base em boletins de ocorrência, uma prática que os países mais desenvolvidos abandonaram há décadas. Nos EUA, o serviço nacional de pesquisas de vitimização, National Crime Victimization Survey (NCVS), existe desde 1973 (https://goo.gl/YK6Vvq). O serviço inglês, Crime Survey for England and Wales (https://goo.gl/SSF3Zn), existe há 30 anos. As pesquisas de vitimização, assinale-se, não dizem respeito apenas às realidades dos países mais desenvolvidos. Na Colômbia, que superou uma das situações mais violentas do mundo, as pesquisas se tornaram comuns e é com elas que os gestores contam para saber o que de fato está ocorrendo. Nesse país, a Encuesta de Percepción e Victimización, realizada semestralmente, é encomendada pela Câmara de Comércio de Bogotá há 17 anos (https://goo.gl/ex8VGb). O mesmo ocorre em outras nações na América Latina, na África e na Ásia. Os empresários colombianos, assinale-se, perceberam corretamente que a melhor contribuição que poderiam oferecer aos policiais eram recursos de inteligência e de modernização de gestão.
Quando medimos o crime pelas ocorrências registradas, escolhemos não conhecer. Pior do que isso, cedemos a um sistema que não seleciona as condutas ilícitas dos extratos mais privilegiados da sociedade como a corrupção, a sonegação de impostos ou a poluição, para citar apenas três dos mais comuns. Precisamente porque ninguém liga para o 190 ou vai a uma Delegacia denunciá-las. Essa é a razão pela qual a maioria dos policiais brasileiros jamais irá prender um bandido rico. Não que eles não o desejem. O que ocorre é que o sistema no qual eles trabalham não seleciona os crimes dos poderosos, sendo a Polícia Federal, nesse particular, um salutar ponto fora da curva. Seguimos, por incrível que pareça, falando em segurança pública a partir da divisão entre “pessoas de bem” e “pessoas do mal”. Um maniqueísmo comum na mentalidade infantil que segue povoando o imaginário dos adultos. O sistema também não se presta a medir a incidência do racismo, da homofobia, da violência contra mulheres e crianças, da pedofilia, das fraudes, do dinheiro falso, dos crimes praticados pela Internet, além de delitos como a tortura e o abuso de autoridade.
No Brasil, chegamos ao ponto de considerar como indicador de eficiência das organizações policiais o número de prisões efetuadas. Outro ponto muito comumente usado é o de apreensões de drogas ilegais. Quem entrar no site da Secretaria de Segurança Pública do RS verá exatamente isso em “Indicadores de Eficiência” (http://www.ssp.rs.gov.br/inicial).
Vale olhar os números com atenção. Em 2017, a Brigada Militar efetuou 102.493 prisões em todo o estado. Desse total, 257 pessoas foram detidas sob a acusação de homicídio, o que significa 0,2% do total de prisões efetuadas. No mesmo ano, por exemplo, a BM prendeu 5.069 motoristas flagrados com direito de dirigir suspenso. Se a qualidade dessas 102 mil prisões e o impacto efetivo que eles produzem fossem consideradas minimamente, estaríamos diante de um exemplo avassalador de ineficiência. O mesmo pode ser dito quanto às apreensões de drogas. Novamente, vale examinar os dados: em 2007, as polícias gaúchas apreenderam 3,4 toneladas de maconha, 88,8 quilos de cocaína e 119 quilos de crack (SSP). Dez anos depois, em 2017, as mesmas polícias apreenderam 14 toneladas de maconha, 585 quilos de cocaína e 494 quilos de crack (SSP). Quanto mais se apreende drogas ilícitas, mais drogas há para apreender. Quanto mais pessoas envolvidas com drogas são presas e empilhadas em galerias, mais fortes as facções prisionais e mais violência futura contratamos. Nessa escalada, jogamos nossos policiais em uma guerra sem fim, para que matem cada vez mais e para que sejam mortos cada vez mais. Uma guerra perdida em todos os lugares onde se insistiu no proibicionismo e no encarceramento em massa. E ainda chamamos isso de “eficiência”, sem corar.
(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).
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