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18 de outubro de 2015
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11:01

Porto Alegre e seus muitos muros

Por
Sul 21
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Porto Alegre e seus muitos muros
Porto Alegre e seus muitos muros

Por Marcelo Carneiro da Cunha

Estimados sulvinteumenses, pois cá estava curtindo a secura do ar paulistano quando chegam as imagens do Guaíba lambendo o cais do porto.

Eu cresci sob esse debate, muro ou não muro. Que o muro é um raio de feio, não há dúvida. O muro de Berlim era igualmente feio e sem graça, foi o que descobri quando fui morar lá. Saí de um muro pra cair noutro, foi o que pensei olhando pra aquela coisa cinza e sem vida. Não era bem assim. Do lado de cá, ocidental, o muro era apenas uma esquisitice. Do outro lado, que eu também conheci, o muro era apenas a seção final do horror stalinista. Pelo menos em Porto Alegre o muro tem cidade de um lado e um rio poético do outro, com problemas apenas quando a poesia tende ao alexandrino, como nessa semana.

Em um poema do Robert Frost, Mending Wall, o narrador se pergunta sobre a necessidade de muros. Ele diz que “something there is that doesn´t love a wall, that wants it down”. Boa parte da cidade viveu odiando o muro e o querendo colocado abaixo. Bem nessa hora, ele resolve nos enviar um “veja bem”, que não poderia ser mais eloquente em seu silêncio. Uma lambida de água nas nossas botas, nas tristes casas das ilhas miseráveis em frente a Porto Alegre, e pronto, lembramos que água é água, e muita água é receita para confusão.

Porto Alegre é um dos lugares que conheço que mais apreciam debates intensos e não tão racionais sobre problemas práticos. Cercar ou não cercar a Redenção. Cobrir ou não cobrir o Araújo Viana. Retirar a Vila Dique para estender a pista do aeroporto. O que fazer com o Cais Mauá. Com muro ou sem muro? No fundo, o debate serve para não se fazer coisa alguma. No caso da Redenção, o parque segue se desfazendo, enquanto eu vivo parques ótimos e cercados aqui em São Paulo, usados por tudo mundo, democráticos e bem cuidados. O Cais Mauá segue não acontecendo, com um dos lugares mais lindos que eu conheço servindo para praticamente nada, há décadas. O muro continuou ali e firme, e agora, descobrimos, a inação foi útil.

O problema com Porto Alegre não é tanto que escolhas sejam feitas, porque elas não são feitas. O parque não segue sem cerca porque assim foi decidido, mas porque ninguém decidiu nada. O muro segue firme e forte porque muros não somem no ar. O Cais Mauá segue vazio porque o grupo que venceu a licitação não consegue fazer algo com ele que tenha um sentido econômico.

Aqui, caros leitores, Haddad, o Grande, implantou quilômetros e quilômetros de corredores e vias para ônibus, e quem não gosta reclama, mas vive. Ele criou ciclovias para todo lado, e a cidade começa a debater o que isso traz de bom e de mau, mas com algo concreto para debater. Ele agora diminuiu a velocidade nas avenidas principais para 50 km por hora, o que nos faz sentir que andamos em slow motion na anteriormente furiosa Marginal Tietê. Gente já começou a não morrer de trânsito, e logo teremos dados concretos para analisar e decidir na próxima eleição. E já fala em fechar a emblemática Avenida Paulista para automóveis aos domingos, algo mais polêmico, acreditem, do que cercar ou não cercar um parque.

São Paulo vive um clima de muitas escolhas, e o debate é dos que gostam do que veem versus os que não gostam. Em Porto Alegre, me parece que as pessoas debatem hipóteses que nunca se realizam.  Eu lembro daquele projeto para o Estaleiro Só, lembram? Não rolou, e o que temos, anos depois, é o mesmo desânimo sür Guaibá.

Não temos a OSPA, a Mário Quintana segue um esqueleto sem alma, o Multipalco do São Pedro necas. A Bienal do Mercosul naufraga, pelo que leio, e o Cais serve apenas para o Cisne Branco atracar – o que é uma demonstração da vitalidade que isso ali poderia ter com cafés, parque, escritórios para pessoas poderem trabalhar olhando para aquele lindeza e desentristezando um pouco o centro, coisas públicas e privadas, umas sustentando as outras. A Redenção me traz lágrimas quando meu filho pequeno em visita acha que é um Ibirapuera e eu vejo o estado das coisas na comparação com minhas lembranças infantis.

A única não-escolha que parece ter dado certo é o muro, útil a cada cinquenta anos, mais ou menos. Com o aquecimento global pode ser que ele venha a ter muito mais uso, quem sabe. Na soma, parece que não erramos nem acertamos, deixamos que o tempo seja o senhor da razão, o que resulta em vazios de um lado, possíveis inundações do outro.

Vou até aí na semana que vem, e talvez por isso essa noticia da enchente tenha me afetado de forma particular. Meu avô trabalhava no Tesouro do Estado e foi pro serviço de barco, em 1941. Pelo menos ele conheceu um Rio Grande e uma Porto Alegre que iam lá e faziam, mesmo que com alguma demora. A que eu vivi e deixei, nem isso.

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Marcelo Carneiro da Cunha é escritor.


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