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26 de agosto de 2015
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11:00

O elogio da burrice

Por
Sul 21
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O elogio da burrice
O elogio da burrice

Por Marcelo Carneiro da Cunha

Caros sulvinteumenses, que época vivemos. Olhei para alguma capa de portal ontem e nela reinavam Fernando Collor, Eduardo Cunha e Renan Calheiros. Que combinação de poderes mentais, minha gente!

E me dou conta de que são 504 anos desde que Erasmus publicou o Elogio da Loucura e incendiou a Europa. Ao colocar a loucura no centro dos acontecimentos, onde se queria a razão, ele iluminou a compreensão dos seus contemporâneos, fazendo graça da insanidade reinante, revelando-a de forma muito mais impactante do que com mais algum folheto-denúncia entre os que circulavam às pencas por lá.

Pois quem vai muito bem, obrigado, e no comando do trem é a burrice, em sua forma mais engravatada: a adotada por políticos profissionais e pastores pra lá de profissionais. Na denúncia apresentada ontem pela Procuradoria Geral da União, milhões são entregues a Eduardo Cunha através da Assembleia de Deus. A burrice, caros sulvinteumenses, voa juntinha e em bando, tal qual gansos canadenses indo para o Taim.

Nenhum país, local, ou época, está livre. A Atenas que a gente tanto admira reuniu uma assembleia de aposentados e condenou Sócrates a tomar cicuta, e de lá pra cá a coisa não parece ter melhorado em nada. Os Estados Unidos, que tiveram oito anos de um presidente entre os mais inteligentes do mundo, e o cara que melhor entende o século 21, podem eleger nada menos que Donald Trump no ano que vem, assim como elegeram Reagan, tecnicamente uma anta, no passado. O Brasil teve os anos Lula, de uma forte inteligência que afastou as forças da escuridão em parte, mas se aliou a outras também. A era Lula não foi uma era onde a burrice mandou, mesmo que ela estivesse por perto.

Já o nosso atual momento é daqueles em que a gente sente vontade de mandar todo mundo para uma escola virtual e inexistente, aquela escola sonhada onde até mesmo um Sartori aprenderia alguma coisa.

Lendo, vendo, escutando, ouvimos uivos, caros sulvinteumenses, quando não zurros. A brava assembleia legislativa (em minúsculo mesmo) do bravo Rio de Janeiro criou uma lei que torna ilegal criticar as religiões, como se no século 16 estivéssemos. Para a burrice completa, século bom mesmo é o 14, da peste, o resto é excessivamente contaminado por ideias tais como. Bom, ideias.

E é para lá que eles querem nos levar, e é lá que eu nos sinto, por vezes e por muitas vezes. Dia 20 marcharam os  que querem proteger a Dilma das forças da escuridão. Pois marcharam com uma faixa à frente que dizia “Fora Cunha. Fora Levi.” O Levi a que eles se referem deve ser o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, que até ontem se escrevia com ipsilone. A burrice não lida bem com alfabetos, sabemos, e ela é ideologicamente heterogênea.

Eu acho que brasileiros adultos já passaram por quase tudo, inclusive o impiche de um presidente legalmente eleito. A burrice é não saber que isso não se faz impunemente, mas com a criação de precedentes. Nos livramos de uma péssima escolha feita no fervor de 89, mas criamos o impiche e duas burrices: o Fora FHC, e agora o Fora Dilma. A burrice, caros leitores, ela acontece em sucessão.

Eu vi a malta que marchou pela Paulista no domingo passado, e sim, era um bando de gente desfalcada das melhores faculdades, vide os textos e os gritos. Vi o povo dos carros de som no dia 20, e não eram significativamente melhores. Melhor é quando se aponta caminhos, e não apenas para um buraco.

O que acontece, de verdade, é que somos um país trancado no século 20, carregando uma parte pesada que segue no décimo-nono. O que acontece é que praticamente nada do que é criado e produzido no mundo de hoje parte de nós, fora o minério de ferro e a soja. Permanecemos firmes no pântano porque ali a burrice se sente mais à vontade, parte dela feliz na condição de sanguessugas. E não vejo forças, de nenhum dos lados, capazes de romper com essa inércia.

A missão do PT era nos tirar disso aí, e ele conseguiu em parte, mas apenas na parte mais convencional. Combater a miséria extrema, levar eletricidade, melhorar a merenda, comprar mais livros pras escolas, democratizar um teco o acesso a bens de consumo. Importante, sem dúvida. Mas e a inteligência que nos tiraria do fosso da nossa burrice histórica foi trocada por uma Copa e uma Olimpíada, ambas inúteis. A burrice nos pegou pelo tornozelo e cá estamos.

A burrice, ao contrário de quase todo mundo, sabe muito bem o que faz. Ela é um zagueiro fundamental e não precisa fazer nada, apenas evitar que alguma coisa aconteça. E, pelo que se consegue ver, através da bruma dos excessos da nossa mídia, a vitória, ao menos nesse momento, é dela.

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Marcelo Carneiro da Cunha é escritor.


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