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20 de abril de 2015
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11:31

O racista em você

Por
Sul 21
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O racista em você
O racista em você

Por Marcelo Carneiro da Cunha

Estimados sulvinteumenses, vocês não perceberam, mas eu sumi. Fui abduzido, essa é a verdade, pela combinação de demandas de um filho de três anos e alguns meses e de um novo negócio. Eu, se vocês não sabem ainda, gosto de escrever livros, roteiros, e de criar coisas que viram empresas e geram empregos e fazem o país sair do abismo.

E li Monteiro Lobato quando criancinha, e não percebi o que era dito por um cara que devia ser ao mesmo tempo racista e produto do seu tempo. Li Tom Sawyer aos onze, por aí, e creio que foi naquelas páginas que eu descobri a emoção que um livro pode causar. Tom tentando seduzir a lindinha Becky Thatcher era tão desastrado quanto eu tentando atrair os olhares da lindinha Isabel, na quarta série, e o livro tocou meu coração de um jeito que nada mais fez, desde então. E Tom Sawyer era tão racista que negros eram niggers e indígenas eram injun. Eu, do meu lado, nada notei. Só tinha olhos pra Becky, claro.

Eu não me creio machista. Mas, ao criticar as mulheres, se eu faço isso, sou tachado de machista, sem que o crítico entre muito no mérito do que está sendo dito, e esse é um custo da nossa época politicamente correta e desastrada.

O problema do politicamente correto é justamente o tom de indignação moral que vem junto e não pode ser vendido separadamente. E o problema dessa indignação moral é que debates importantes se tornam impossíveis. Tentem vocês dialogar com alguém cheio de indignação moral e vejam até onde chega a conversa.

Eu vi que nessa semana e aí na Leal e Valerosa, um dos debates intensos foi produzido pela Cintia Moscovich em um texto tolamente (na minha opinião) intitulado “Eu sou racista”. Eu acho que a Cintia tem todo o direito de protestar contra o politicamente correto dos movimentos sociais e seus eventuais exageros.  Eu, por exemplo, sou contra as cotas raciais, e muito contra, porque elas são racistas. Eu sou contra todo o tipo de racismo, inclusive o racista. Para mim, a gente deve facilitar o acesso à universidade para todo mundo que ficou de fora do jogo até agora, e isso inclui uma parte da população negra, óbvio. Mas eu acho que a gente tem que facilitar o acesso de todos, independente da cor. Introduzir o fator raça, em um país miscigenado como o nosso, é produzir confusão onde não precisa. Facilite o acesso, equilibre as coisas para quem estiver na base da pirâmide, independentemente da cor, e as coisas melhoram. Facilite pela cor e você está indo contra a Constituição, apenas para lembrar de um detalhe menor.

Se você, caro leitor, discorda, venha com argumentos sensatos, e não com indignação moral e teremos um debate, e não um caminhão de som, e todos saímos ganhando.

A Cintia ficou irritada com alguma coisa do movimento negro, e eu posso compreender que grupos que usem da indignação moral possam mesmo ser irritantes. A reação ao texto da Cintia foi a de sempre, nesses tempos.

Eu não gostei do texto, discordo da tese, se é que eu tenha entendido a tese, não gosto do título, e, no entanto, acredito que a Cintia tenha o direito de se manifestar contra o que tenha sido a tal manifestação a que assistiu.

Racistas somos todos, eu acho, no sentido que, de alguma maneira, nosso sistema é desenhado para categorizar. Interpretamos grupos pelos seus atributos, inclusive físicos, e reagimos a isso. Uma coisa é termos estereótipos implantados em nós, por conta de nossa formação, época e sociedade em que vivemos, e reconhecermos isso com honestidade. Essa é a única forma de lutarmos contra esses implantes, nos libertarmos desses preconceitos e nos tornarmos pessoas melhores e mais humanas. Reconhecer um defeito é ainda a melhor forma de combater esse defeito. Eu tento identificar , reconhecer e combater os meus defeitos desde que percebi que eu não era perfeito – o que aconteceu quando a Isabel disse que eu não tinha carisma, e eu precisei ir para o dicionário descobrir qual era o problema. Até hoje acho que me faltava mais altura do que carisma, e a gente também avalia pessoas pelo seu corpo, mesmo que muitos indignados morais não queiram admitir algo tão básico.

Eu nunca discriminei na prática, que eu saiba (fora algum colorado em maus dias, isso até é possível, mas passou). Isso não faz de mim, nem de você, nem do senhor aqui ao lado, uma pessoa melhor. Faz de nós apenas pessoas que se dão ao trabalho de se comportar como seres humanos com alguma ética centrada no humano. Muito provavelmente somos recheados de preconceitos, inclusive raciais. Admitirmos que essa fraqueza faz parte da composição social de todas as sociedades é um começo, e a luta parte desse ponto. Não reconhecer isso é bonitinho, e provavelmente falso.

Já fui alvo de olhares e comentários racistas, porque sou preto o bastante para ser preto, e branco o bastante para ser branco, além de, após o 11 de setembro, ter me transformado em algo com um árabe genérico em todos os Estados Unidos. O racismo, dentro da gente, é um traço da imperfeição da condição humana e das sociedades humanas. Na prática, ele é intolerável e tem mesmo que ser crime inafiançável. Saber o que é uma coisa e o que é a outra, é essencial. Já a indignação moral, essa não serve para quase nada, a não ser para quem o pratica se sinta, mesmo por alguns instantes, superior a alguma coisa que ninguém sabe exatamente o que seja, e mais nada.

Marcelo Carneiro da Cunha é escritor.


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