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8 de janeiro de 2015
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10:16

O Islã, o Ocidente, e o Cervantes

Por
Sul 21
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Por Marcelo Carneiro da Cunha

Pois, estimados sulvinteumenses, cá estamos nós, do lado de cá de 2015, menos vastos setores do nosso estimado rincão que preferiram o século 20 e o Sartori.

E do lado de cá de 2015 acontecem coisas do lado de lá do século 12, como esse PEGIDA, movimento alemão que se manifesta de mentirinha contra o Islã, mas na verdade contra os imigrantes turcos e similares na Alemanha.

A Alemanha quis resolver o problema da falta de mão de obra industrial após a Segunda Guerra importando turcos em quantidades industriais. Ela os chamou de Gastarbeiter, ou trabalhadores convidados, achando que eles iriam de volta pra Turquia depois de ganharem os seus marcos e todo mundo seguiria contente rumo a Oz.

Caiu aqui com o teclado: alguém aí acha que o sujeito ia mesmo voltar pra Anatólia depois de ter provados dos prazeres das Bratwurst com Sauerkraut? Esse povo vinha da duríssima vida rural turca, e de repente estava no meio da mais poderosa economia da Europa, com todas as vantagens que isso traz. Nunca que iam voltar, e não voltaram, óbvio.

O problema é que a Alemanha não é o Brasil, por exemplo, onde o sujeito chega, aprende meia dúzia de palavras no idioma do Aldo Rebelo e pimba, vira brasileiro. Um turco não vira alemão, um alemão não vira turco, e assim tem sido, sem maiores sinais de mudança.

E, por cima, os turcos costumam ser islâmicos, uma religião com uma longa história de quebradeiras com o Ocidente.  Religião, na Alemanha, é mais ou menos como aqui, e menos. A vida ocidental é secular, e isso define o Ocidente, mesmo com o cristianismo fazendo o pano de fundo da nossa normalidade social, e outras religiões minoritárias compondo o seu mosaico.

Os islâmicos não são assim. Aparentemente, a religião pra eles segue tendo a centralidade que o cristianismo possuía aqui no século 16, e isso é meio que incompatível como a ideia de Ocidente. Se ele é concebido a partir da tolerância, essa tolerância tem que ser equilibrada com a ideia de igualdade. Uma religião que oprime as mulheres não pode ser tolerada no Ocidente, e por aí vai o nosso problema.

A Alemanha precisa mudar o jogo, e admitir que cidadão é quem aceita participar do jogo. No Brasil, o cara decide ser brasileiro, adota a cultura e a ex-gloriosa camisa canarinho e pronto. A nossa identidade é marcada pela cultura, e não por sangue, geografia, ou herança.Aqui, coreanos chegados nos anos 80 já são brasileiros de fato e direito, e os filhos mais ainda. A Alemanha precisa disso, mas não sabe como. Os turcos, chegados nos anos 70, ainda não são alemães, e do jeito que as coisas são, nunca serão. As antenas parabólicas deles, nos bairros turcos de Berlim onde eu morei, apontam pra Istambul.

A Alemanha precisa mudar para que seus imigrantes mudem, porque ela precisa de imigrantes. Se ela quer que eles se comportem como alemães, deve oferecer a eles a chance de serem alemães, e as compensações para que deixem de ser como eram. A alternativa é deixar os imigrantes eternamente em guetos, e olhem como isso deu certo na Europa.

Os xenófobos se dizem contra o Islã, mas são contra os imigrantes. Como não podem ser politicamente incorretos, se dizem religiosamente corretos, e isso é uma grande mentira. O que existe, não é um problema islâmico, mas um problema de não-adaptação ao Ocidente por parte dos imigrantes islâmicos, que não fazem isso porque querem, mas porque não lhes dão escolha.

O Islã, na forma como é concebido no mundo islâmico, é mesmo incompatível com o Ocidente, onde o Estado manda mais do que a religião e a limita. Se o sujeito quer ser ocidental, precisa ter uma atitude ocidental com relação à religião. Feito isso, deixem ele ser ocidental, uai. Os meus caros leitores sabem que eu acho todas as religiões igualmente horríveis, mas também acho que o Islã é um pouco pior, na prática, porque ele espera submissão dos seus fiéis. Isso acaba mal, sempre. Submissão a Deus sempre termina em submissão a algum octogenário com sobrancelhas em excesso e misoginia saindo pelos poros. Nós fomos assim, e sabemos.

O Ocidente virou o que é porque venceu a longa guerra contra a Igreja e contra os avanços do Islã, e o meu ídolo de todos os tempos, Cervantes, lutou e foi ferido na batalha de Lepanto, que mais ou menos desempatou o jogo a nosso favor, em 1571.

Eu vivo bem em um mundo cristão e não por ele ser cristão, mas por ser ocidental e eu não ter que dar bola pra religião alguma. No mundo islâmico, eu, o senhor aqui ao lado, o caro leitor, não teríamos essa mesma liberdade porque ele é teocrático e não democrático.

Um islâmico que se muda para o Ocidente ganha o mesmo direito que eu tenho, o de dar para a religião o espaço que eu quiser, desde que respeite as leis seculares do lugar onde vivo. Ele deve demonstrar apreço por essa regra básica, e ser aceito como um igual, porque então estará se comportando como, e todos viveremos felizes para sempre.

Uns anos atrás eu estava em um metrô em Berlim, com quatro jovens turcos e um outro jovem moreno e com uma cerveja na mão. Eu sou moreno, mas, de alguma forma eles me olharam e desconsideraram a minha candidatura a ser um deles. Para o outro, com a cerveja na mão, perguntaram de onde ele era: “Bangladesh”

“Are you a Muslim?”

“Yes”

“You should not be drinking”

O rapaz era pequeno, os outros eram grandes e olhavam feio.

“I am drinking because I like it, and because here I can.”

E aí, caros leitores, está toda, mas toda mesmo, a diferença.

Ademã, e vamos em frente.

* Esse texto foi escrito na noite anterior ao ataque horrendo ao Charlie Hebdo e segue valendo, apenas de uma maneira mais triste e em um mundo ainda mais trágico e perigoso.

Marcelo Carneiro da Cunha é escritor


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