Lélia Almeida
Depois do dia da festa de noivado entre amigos e familiares que assistiram surpresos a troca das alianças seguida de uma fatia de bolo branco, partiu o noivo levando a noiva, país afora para vida nova. Iam no carro com os três gatos da noiva em caixas próprias, duas malas vermelhas, e o casal que começou a descer o país ouvindo Tim Maia.
Ali, entre o sem fim do Goiás e o começo de Minas a noiva envergonhada pediu para ir ao banheiro. Pararam numa beira de estrada no meio do nada, um nada exato de céu azul e verde exuberante saindo da terra ocre onde uma mulher desdentada e com pelos no queixo oferecia queijos e doces embaixo de uma árvore, num galpão pequeno. Ao lado de uma casa de barro coberta de sapê. A noiva entrou na casa que tinha um quarto grande, uma cama branca e, separando o quarto de um banheiro pequeno, um tecido de chita de cores fortes.
Quando estava no banheiro a noiva pensou e se ele vai embora e me deixa aqui, neste fim de mundo, sozinha?
Apressou-se no xixi e ainda teve tempo de ver o carro preto partindo lá longe e a velha que a olhava e não dizia nada.
Ao lado do pequeno galpão as caixas com os três gatos e nada mais.
Ali ficou a noiva, que ao cair da noite abriu a caixa dos gatos para que pudessem partir também. E os bichanos, perderam-se, como o noivo, estrada afora atrás de comida. A velha recolheu os queijos e os doces e sumiu.
A noiva ficou no meio do mundo as manhãs, as tardes e as noites de 365 dias no meio da estrada por onde não passava ninguém.
A noiva ficou no meio do mundo as manhãs, as tardes e as noites de mais 365 dias no meio da estrada onde passou, numa manhã de primavera, um carro de bois que carregava um velho, uma criança e tarros grandes de leite.
A noiva ficou parada na beira da estrada. Seu cabelo embranqueceu, as pálpebras soçobraram dos olhos verdes que o noivo tanto dizia amar e como cascatas de rugas encontraram, como na quebra de um rio, com a linha da boca que parecia ter um sorriso invertido, lembrando palhaço triste.
Ali ficou a noiva, que nem lembrava mais dos gatos e do noivo.
Aprendera, sob a intempérie, a concentrar-se em si mesma, no ritmo da respiração do corpo, no movimento da luz e da sombra das estrelas e das manhãs, na velocidade dos ventos e da temperatura das águas que caíam, ora pingos gelados, ora mornos e dourados. E de como a seca mastigava a sua pele mais profunda.
Um dia pela manhã viu, deitada a seus pés, uma carcaça seca, do seu tamanho. Estava pronta. Muda, de cabelos ralos e brancos e sem dois dentes.
Saiu do meio do nada, ali entre o sem fim do Goiás e o começo de Minas e subiu na boléia de um caminhão que perguntou à noiva para onde ela ia: – Eu tô voltando pra casa, respondeu.
Nunca mais soube do noivo. E agora ela sabe que coisas assim acontecem com as pessoas. Esta noite sonhou que um dos gatos mamava no seu peito.
E soube que o tempo da morte tinha passado.
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Lélia Almeida é escritora.