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23 de abril de 2016
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10:06

Carta ao meu filho

Por
Sul 21
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img_como_escrever_uma_carta_de_agradecimento_a_um_professor_4316_origPor Lélia Almeida

(más vale sollozar afilando la navaja. Lorca.)

Pedro,

Esta carta tem um tom de mea-culpa, uma mea-culpa tardia e, provavelmente, inútil.

Enquanto via a votação do impeachment da Presidente Dilma no domingo, lembrei de uma cena muito antiga. Tu ainda não tinhas dois anos completos, em 1992, e estávamos na Praça da Prefeitura de POA, onde havia um grande telão e viu-se, voto a voto, o impeachment do Presidente do Collor. Tu estavas no meu colo, num canguru, e eu chorava de emoção ao ver o resultado que se desenhava, o da derrota do Collor, e chorava e tu me emprestavas a tua chupeta para eu parar de chorar. Eu chorava de alegria e de emoção, mas isto tu não podias saber.

Eu era jovem, fazia parte de uma geração que tinha orgulho profundo de fazer parte da construção do processo democrático no nosso país. Este orgulho forjou as nossas vidas, a nossa existência já que, para além das escolhas políticas, a gente namorava, e tinha amigos que acreditavam nas mesmas coisas que nós, pessoas com que casávamos e tínhamos filhos comungando a esperança de um mundo mais justo que saía do terror de uma ditadura.

Éramos jovens, estávamos na faculdade, fazendo escolhas de caminhos, cheios de esperanças e o projeto político que começava ali, era, mais do que tudo, um projeto coletivo, não era apenas um projeto individual. Era o projeto da nossa vida. E esta sensação de pertença que a nossa geração teve foi estruturadora de muitas maneiras nos nossos caminhos e nos mantém, a muitos, unidos e amigos até hoje.

Sempre tive dificuldade de te explicar algumas coisas, tu, que desde cedo escolheste o caminho artístico e não te sentias emocionado com o jeito formal de fazer política ou da militância. E sempre me dissestes que o que eu era, no fundo, era uma velha anarquista, porque eu era uma escritora. Nas manifestações de 2013 ouvi muito mais a ti e aos teus amigos sobre o que estava acontecendo, já que não encontrei, nem naquele momento, e nem até agora, nenhuma interpretação convincente do que aconteceu ali. E que sinto que permanece vivo de um jeito que talvez não saibamos ainda decodificar. Porque na frente do que é novo sempre tentamos nomear o que desconhecemos com as palavras que sabemos e isto não funciona.

A nossa trajetória juntos sempre foi um diálogo riquíssimo sobre os filmes vistos, os livros lidos, as músicas e tudo o que aprendi contigo sobre filósofos que eu sequer sabia existir. E aprendi o tanto que os artistas podem chegar a ser muito mais políticos e demolidores das certezas obsoletas, profetizando um mundo em desconstrução do que o alcance que alguns discursos políticos possam dar conta. Eles, cheios de chavões, músicas e palavras de ordens que, na repetição, parecem não entender de fato o que está ocorrendo no mundo.

Passei imediatamente pro teu lado, desiludida de muitas formas com o que via ao meu redor. Nossa estadia de uma década em Brasília foi riquíssima e pudemos conhecer realidades as mais precárias, violentas e tristes deste país. Não éramos mais os mesmos, não acreditávamos mais em muitas coisas que foram ficando pra trás. E cultivamos a certeza que só o olhar e o obrar artístico são capazes de mudar efetivamente o mundo. Esta é a nossa utopia, a da poesia e a do cultivo da alma. Convivo com os teus amigos que gostam da bike, que não são consumistas, que vivem de uma maneira mais simples e que querem viver de um jeito diferente.

Acho que muitos de nós não olhamos com atenção para o que estava acontecendo de verdade e criamos vocês dando celulares caros, viagens ao exterior, facilidades de toda ordem, sem saber o que vocês realmente queriam num mundo caótico onde os projetos da nossa geração eram importantes para nós e nada mais.

Porque tem um jeito de fazer política que acabou. Porque tem um discurso que não toca em nada a existência de vocês, seja ele político, acadêmico ou de outra ordem. E não sabemos ouvir os ecos do futuro que vocês enunciam em condutas e dúvidas da maior importância e só sabemos dizer, burramente, que no nosso tempo não era assim e que éramos melhores em tudo.

Eu não estou nem com ódio e nem com raiva do que aconteceu no domingo. Estou triste, de uma tristeza mansa, vendo a derrocada de um mundo que me foi caro e que está deixando de existir. Porque tem atitudes e pactos que são indefensáveis, porque a ingenuidade ou a arrogância são injustificáveis em tempos de guerra e de desmonte de uma cultura e de uma sociedade. Porque erramos muito. Porque acreditamos que com algumas conquistas feitas estávamos garantidos, esquecendo que aqueles com quem pactuamos não gostam dos pobres, das putas, dos drogados, dos negros, dos índios, das mulheres, dos jovens, dos gays e das pessoas da vida ordinária, que são as da vida de verdade. Não gostam, detestam, odeiam, os veem como perdedores e descartáveis, querem-nos excluídos, e seus valores sobre dignidade e sobre humanidade, são opostos aos nossos.

Chegaste domingo na minha casa e o teu olhar era de pavor, enquanto me perguntavas: – Mader, fudeu? E eu respondi: – Fudeu. E nos abraçamos tristes e assustados.

A tua geração nasceu no início dos anos 90, no momento da queda do muro de Berlin. A tua geração tem esta marca, ela nasceu para derrubar muros. E é este mundo que espera por vocês. E eu confio que vocês vão dar conta das suas jornadas, confio de verdade, e que vamos aprender um outro jeito de viver, e lutar num mundo sobre o qual não conhecemos nada.

Não tenho dúvidas sobre os valores que tentei comungar contigo nestes 25 anos, que são os valores nos quais eu acreditava. Sobre a paz, a amorosidade, a solidariedade, a compaixão, a coletividade, a importância de construir um mundo mais justo num país tão perverso e desigual. Como os meus pais tinham certeza sobre os valores que me ensinaram. Mas quando penso que pudemos viver em tempos de libertação, de aberturas de toda ordem, ripongas alguns, doidos outros, me questiono, nestes últimos dias, sobre um erro fundamental. Já que os tempos que se anunciam pedem estratégias que não soubemos ensinar, já que não acreditávamos na necessidade ou eficiência delas. E este foi um erro grave, talvez de onde venha este sentimento de mea-culpa.

Não fui atenta o suficiente, não olhei o teu futuro, de um ponto de vista que não fosse o meu. Meu filho, se eu pudesse voltar no tempo teria te ensinado a atirar, teria te ensinado o manejo das armas, teria lido sobre estratégias de guerra ou guerrilhas. Porque é isto que teremos pela frente, um mundo cada vez mais fascista, desumano, medíocre e que, para a construção deste outro mundo que sequer imaginamos, este nosso mundo vai morrer. E eu não soube te preparar para isto. Mesmo que eu saiba, internamente, que vocês vão dar conta da dureza do final de um tempo e de um mundo que não serve mais.

Te amo.

Beijo da Mader.

.oOo.

Lélia Almeida é escritora.


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