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16 de janeiro de 2016
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10:25

Recado

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Por Lélia Almeida

Acabo de receber uma msg de uma leitora que me alerta sobre o fato de que me exponho demais nos meus posts e no que escrevo. Que devo me preservar mais, ser mais discreta. E depois ela me desamigou no Face.

Esta é uma questão com a qual convivo toda a vida. Sobre as muitas pessoas que pensam zelar por mim quando me dão este tipo de conselho. A diferença é que agora não me preocupo mais. Porque faz tempo que já entendi que os artistas, os escritores, os músicos, os atores estão aqui para embelezar o mundo, para discordar, para incomodar, e para fazer com que, através da cultura, as pessoas acessem, num movimento conjunto, de dança, de troca, de partilha, seus recursos, suas sombras e suas inimagináveis luzes internas. Os artistas trabalham no sótão, no porão, na interioridade, nestes lugares onde os holofotes não alcançam e que não tem nenhum glamour. Uma amiga minha taróloga, numa festa, foi abordada pelo galã da noite que perguntou a ela com o que ela trabalhava e ela respondeu, eu trabalho com o obscuro. Ele sumiu do lado dela e não foi mais visto na sala. Com o obscuro, com o oculto, com o feio, com o triste, com o que dói, com o que palpita e não sabemos o nome, com as nossas mortes, e com as nossas vidas todas. Não sei qual é a função da arte, mas tem noites que durmo agradecendo ao Tarkovski, ao Almodóvar, à Gaite por terem salvado a minha vida, pelo grande colo e pelo êxtase de uma nova visão ou de um pensamento arrebatador.

As pessoas que me aconselham a ser discreta quando escrevo adoram contar sobre os filmes que viram na semana, as peças que assistiram, os livros que compraram e estão sempre atualizadas sobre o must cultural do momento. A arte para elas é cosmética, acessório, um jeito de se mostrar no mundo, que é diferente de um jeito de estar no mundo. Não consigo acompanhá-las, porque os meus interesses são sempre muito pontuais.

tualmente, por exemplo, só leio sobre escalpelamento, por conta de um livro que estou escrevendo e aí não tenho tempo para me atualizar sobre o que está acontecendo ao meu redor. Estou fascinada pela história dos instrumentos cirúrgicos na história do mundo e sobre coisas que é melhor nem contar. Nada mais me interessa, nada mais desperta a minha curiosidade. Eu não sou uma mulher atualizada, eu me sinto bem dentro de mim e sei onde buscar água quando tenho sede, e jamais errei o caminho. Eu sou uma pessoa grata por poder imaginar e acho a criatividade uma espécie de inteligência superior, e uma grande e forte blindagem espiritual.

Não vou explicar para a minha amiga que não estou aqui escrevendo sobre mim, ela, que tão douta ainda não entendeu que Lélia Almeida é um avatar, uma escritora, uma personagem e que minto muito quando escrevo, e que invento muito quando vivo, e que a mentira e a imaginação são a matéria da ficção. E que é simplista demais querer desvendar o que no texto de alguém é biográfico ou não é. A vida de todos nós é simples, comum e corrente, e as experiências que vivemos e a história dos nossos afetos também se parece. Eu converso com as mulheres menopáusicas, com as mães, com as escritoras, com as amigas, com as meninas, com os jovens, com os homens sós, com as pessoas tristes e com as risadeiras, quando escrevo.

Porque, minha amiga, se você quer estar no mundo com as pessoas, compartilhando a vida de verdade, você não pode fazer isto sem ser quem você é, você não pode fazer isto sem se desnudar, você não pode fazer isto sem mostrar a sua alma. Mesmo que nada disto seja você, já que esta também é uma questão pra lá de ingênua, né. Não tem outro jeito. Vou continuar me expondo tá. Porque escrever ainda é uma das coisas que mais gosto de fazer na vida. E não sei viver e nem escrever com mesuras, luvas de pelica ou etiqueta. E porque não gosto de gente meia boca, não gosto do morno. Porque comigo não tem meia foda, tá bom, querida?

.oOo.

Lélia Almeida é escritora.


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