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29 de novembro de 2015
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09:30

A mulher mais triste do mundo

Por
Sul 21
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Por Lélia Almeida

Como uma Penélope invertida e errática esqueci de amarrar-me ao mastro da nau e fechei os olhos para melhor ouvir o canto do meu amor. Cega, esqueci-me de vê-lo, de olhar nos seus olhos. E fiquei ali, dia após dia, ouvindo a música que me perdia de mim. Seus ruídos. Os passos silenciosos pela manhã ao sair do quarto para não me acordar. O chiado da água da chaleira para o mate. O barulho da ração derramada nos potes das cadelas e o barulho dele escovando os dentes. O jeito como ele entrava na cozinha ao meio dia e me abraçava sussurrando, minha linda mulher, minha princesa. O ranger do portão de ferro quando ele abria a garagem na tardinha e o jeito que ele punha a mão pela janela para abrir a porta por dentro. O serrilhar das folhas no pátio nos sábados pela manhã, o motor do cortador de grama, a água da mangueira para lavar o carro no domingo depois do almoço, os gritos de gol quando o Inter ganhava, o estalar dos dedos para chamar as cadelas pra dentro do pátio, o barulho do fogo queimando a papelada da semana e ele guardando o carro na garagem. O vento embalando os eucaliptos. O mugido dos bois e o revoar das garças rosas. O pio das gaivotas, o mar lá longe e a lenha crepitando na lareira. Ele fechando as grandes e emperradas janelas. E o seu ressonar calmo quando adormecia abraçado no meu corpo. Ouvi tudo e esqueci-me de ver. De ver que ele tinha partido, que ele não estava mais ali. Não sei o que fazer com estes ruídos que ainda reverberam nos meus dias, agora que abri os olhos e não sei para onde ele foi. Esqueci-me ingenuamente da cera das abelhas nos ouvidos e do perigo inexorável da melodia encantatória, esta minha velha conhecida. Agora olho atentamente e não o vejo. Mas a lição é simples, Eros é cego e agora sou a mulher mais triste do mundo longe daqueles ruídos.

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Lélia Almeida é escritora.


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