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4 de outubro de 2012
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07:19

Monopólios arraigados

Por
Sul 21
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Ao contrário do que acontece no Brasil, onde a criação de um marco regulatório para o setor de mídia ainda está em fase de discussões, na Argentina, as comunicações audiovisuais dispõem de regulamentação desde 2009, quando foi aprovada a chamada Lei de Meios. Mas fazer valer o principal objetivo da lei —acabar com a concentração de veículos e assim democratizar a informação— não está sendo tarefa fácil para o governo argentino.

O principal entrave ao cumprimento da nova lei chama-se Grupo Clarín. Com mais de 240 licenças de TV a cabo, nove rádios AM, uma FM e quatro canais de televisão aberta, o maior conglomerado de mídia do país segue resistindo às exigências da nova legislação.

Amparado por liminar que suspendeu o artigo 161 da lei, segundo o qual os grupos que excedem os limites de concentração de mercado devem fazer desinvestimento, ou seja, desfazer-se de ativos, o Clarín, julgando-se acima da lei, tem ignorado solenemente as novas regras.

A Lei de Meios determina que cada grupo pode deter no máximo 24 licenças parar operar TV a cabo e atender 35% do mercado —uma barreira ao monopólio. Também estipula que quem fornece o serviço de TV a cabo deve se limitar a um único canal de conteúdo. O Clarín tem sete vezes mais licenças que o estabelecido e controla 47% do mercado argentino através de suas subsidiárias. Somente no primeiro semestre deste ano o grupo faturou US$ 1,2 bilhão, sendo que 66% deste total vieram da TV a cabo.

Em junho, a presidenta Cristina Kirchner já havia enfrentado a oposição feroz dos grandes grupos de comunicação locais, anunciando a abertura de licitação para a concessão de 220 novas licenças para operação de audiovisual no país. De acordo com a lei, metade destas concessões foi aberta para o setor público e a outra metade dividida entre governos federal, estaduais e organizações sem fins lucrativos.

Na última semana, em nova ofensiva, a presidenta voltou à rede nacional para informar que, a partir de 7 de dezembro —data estipulada pela Corte Suprema de Justiça do país para vigência do artigo 161—, irá licitar as licenças excedentes do oligopólio formado pelo Clarín, repassando-as a novos titulares ainda neste ano. Segundo o governo, as demais empresas de comunicação argentinas já apresentaram seus planos de ajuste aos termos da nova lei.

Em resposta, o grupo Clarín, que desde 2008 assume postura de oposição ao governo, divulgou vídeo em sua página na Internet afirmando que o processo de impugnação judicial dos artigos 161 e 45 está em pleno trâmite e que “não vai acontecer nada”, ignorando, assim, a prescrição da vigência da liminar que o protege.

Ao refutar a legislação, resistir às decisões judiciais e passar por cima da agência reguladora do setor, a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca), o grupo Clarín, que recorrentemente apela ao “Estado de Direito”, mostra a incoerência entre o seu discurso e a sua prática, tentando a todo custo manter o seu cartel midiático.

A grande imprensa brasileira que, para defender sua posição e seus interesses, demonizou a Lei de Meios, sem realizar um debate sério e aprofundado sobre o avanço que ela representa —fruto de estudos detalhados de legislações aplicadas para a área de comunicação em todo o mundo e de amplos debates com a sociedade— agora, nos poucos espaços que dedica ao assunto, volta ao velho engodo da censura que estaria sendo praticada contra o Clarín.

Ora, tratar como censura uma lei que enfrenta o excesso de concentração de poderes para conferir pluralidade de vozes nos meios de comunicação é uma postura cínica que a sociedade não pode aceitar.

A maior parte dos países se vale de parâmetros para estabelecer o funcionamento do setor de mídia, sem qualquer prejuízo à liberdade de expressão. Nos EUA, por exemplo, a propriedade cruzada de meios de comunicação é proibida, impedindo que um mesmo grupo controle uma emissora de rádio ou TV e um jornal na mesma cidade. Lá, assim como no Canadá, há diversas restrições sobre as transmissões, como a proibição de veiculação de propaganda comercial durante os programas infantis.

Na França, as exigências são ainda maiores. O país conta com uma agência reguladora que monitora o cumprimento pela mídia de regras como a função educativa, a proteção aos direitos autorais e a promoção da diversidade da cultura e a preservação da língua francesa, por meio de cotas de veiculação de conteúdos nacionais e europeus tanto nas rádios como na TV. A lei também veda a propriedade de mais do que duas empresas de TV com 4 milhões de telespectadores, ou de duas emissoras de rádio com audiência potencial acima de 30 milhões de ouvintes. Além disso, nenhum grupo de comunicação pode controlar mais de 30% da mídia impressa diária.

Em Portugal, desde 2005, existe um órgão regulador, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que concede e fiscaliza concessões de rádio e TV, telefonia e telecomunicações, além de jornais impressos, blogues e sites independentes. A agência também tem a função de garantir a isenção no conteúdo, o pluralismo cultural e a diversidade de expressão.

Como se pode perceber, a regra é ter regra. Coibir a concentração do setor de comunicação e a formação de cartéis midiáticos, limitando o controle de mercado, a exemplo do que propõe a Lei de Meios argentina, deve ser o ponto central de toda legislação específica e das regulamentações para o setor.

A resistência dos grandes grupos de comunicação em aceitar a regulamentação, tanto na Argentina como no Brasil, evidencia a defesa exclusiva de seus interesses, em detrimento do direito da sociedade à oferta de informação de qualidade, à diversidade e à pluralidade de conhecimentos e opiniões, como determina a Constituição.

José Dirceu, 66, é advogado, ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT


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