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5 de janeiro de 2017
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10:00

O gozo e o prazer

Por
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O gozo e o prazer
O gozo e o prazer

Por Franklin Cunha

(Com agradecimentos ao Marino e ao Pintaúde)

O gozo, diz o Zizek, em termos psicanalíticos não é igual ao prazer. O gozo está além do princípio do prazer. Enquanto o prazer existe nos moldes do equilíbrio e da satisfação, o gozo é desestabilizador, traumático, excessivo: é o prazer freudiano com dor. É como o verdadeiro humor que, segundo G.B.Shaw, sempre arrasta uma lágrima consigo.

É verdade. Acho que foi o Marino ou o Pintaúde (ou os dois) que me contaram a história do masoquista que tomava banho frio em pleno inverno. Um dia se deu conta que tinha prazer com a água gelada no lombo e de imediato passou a tomar banho quente.

Falando sério. Muitas críticas-padrão marxistas e psicanalíticas ao fascismo, reconhecem que o totalitarismo depende de certa economia perversa do gozo, não no sentido de poupá-lo, mas de dosar seu usufruto. Restringe-se a liberdade, mas aumenta-se a moralidade, a ordem, o respeito pelas hierarquias, a sensação de segurança. Este é o tradicional discurso da direita ideológica. Só que não se pode meramente dizer que se obtivermos uma satisfação direta, simples, não precisaremos destes tipos ilusórios de gozo.

O problema do gozo é que ele nunca funciona sem sequelas, é sempre perturbado. Nas sociedades permissivas de hoje temos o paradoxo inverso. Ou seja: oficialmente temos permissão de gozar, ou melhor, de ter prazer, de organizar nossa vida em torno da maneira de obter a máxima satisfação possível, da eufemística realização pessoal e assim por diante. Mas disso tudo qual é o resultado fundamental? O resultado intrínseco é que para realmente gozarmos a vida, temos de seguir um sem número de normas e proibições: nada de assédio sexual, fumo, alimentos gordurosos ou doces, bebidas alcoólicas, ovos, café, condimentos, nada de situações estressantes e até, temos encontrado e visto, café sem cafeína, cerveja sem álcool, cigarro sem nicotina, ambrosia sem açúcar, carne sem gordura e nessa sequência logo entrará na moda atividade sexual sem orgasmo.

Nas últimas feiras do livro, p. ex., as obras mais vendidas foram as “Pílulas para gozar uma boa saúde” de conhecido médico e as de autoajuda, tudo que precisamos saber para melhor gozarmos a vida e obras de neurolinguística que pretendem nos ensinar como “ chegarmos lá”. Nesse ritmo, para contrariar tais tendências, num dos habituais movimentos de contracultura, numa das próximas feiras é possível que o livro mais procurado seja o que nos ensinará um método, uma técnica segura para realizarmos o sonho do Hemingway: o de obtermos orgasmos de quatro horas de duração sem riscos de enfarto do miocárdio ou acidentes vasculares cerebrais. E sem enlouquecer.

O paradoxo é que, se perseguimos o prazer diretamente como uma meta, somos obrigados a nos submeter a diversas condições, como as dietas restritivas já descritas, preparação física intensa e permanente (hoje, em cada quadra temos uma ou duas fitness house) para sermos sexualmente atraentes. Isto resulta que nosso prazer imediato torna a se estragar.

Para as mulheres as condições são muito mais restringentes e até cruéis, sádicas mesmo: malhações diárias e intensas, “dieta da folha de alface“, bronzeamentos o ano todo, depilações, massagens, cosméticos caríssimos, penteados, correções plásticas de todo o tipo, ademanes, gestos, palavras, atitudes e pensamentos controlados e vigiados, permanentes prontidão e disposição ao orgasmo, condições falocraticamente atribuídas performaticamente ao gênero feminino.

Esse foi o grande equívoco do movimento hippie da década de 60 e da política do gozo que dele emergiu. Opondo-se à chamada repressão burguesa, eles almejaram diretamente o prazer sexual como categoria política. “É proibido proibir“ foi a palavra de ordem dos jovens de 68. O que pretendiam fazer com isso era que em oposição à renúncia ao jugo patriarcal era preciso aprender a viver, a desfrutar espontaneamente a sexualidade sob quaisquer de suas modalidades, as drogas, a vida ou o que fosse, e isso nos tornaria menos agressivos, menos autoritários ( lembram do“Paz e Amor “?). Na verdade o tiro saiu pela culatra. Fica muito claro – e digo isto como esquerdista e pela perspectiva de alguém que tem vários amigos que viveram numa dessas comunas anti-autoritárias – que essa aparente abolição da autoridade gerou uma autoridade ainda mais sufocante: uma espécie de comunidade falsamente igualitária, na qual as proibições são ainda mais radicais e intrusivas.

Domenico de Masi (o do Ócio Criativo), mostrou que o trabalho de um jovem numa grande empresa capitalista moderna, com sua necessária estrutura autoritária, ditatorial mesmo, exige graus de conhecimentos, eficiência, dedicação, intensos regimes de trabalho, além de restrições e enquadramentos de ordem ideológicas e políticas que eliminam todos os espaços de sonho e do prazer de viver. E não raras vezes as drogas, o sexo desenfreado e sem afeto, a velocidade automobilística, os esportes radicais acabam em tentativas para preencher esses espaços. Todas vãs.

.oOo.

Franklin Cunha é médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras.


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