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28 de setembro de 2020
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11:45

Quem acredita na recuperação em “V”?

Por
Sul 21
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Quem acredita na recuperação em “V”?
Quem acredita na recuperação em “V”?
Foto: Luiza Castro/Sul21.

Flavio Fligenspan (*)

Vi na grande imprensa, nos últimos dias, uma vontade de afirmar que está em marcha no Brasil uma recuperação firme da economia, consubstanciando um gráfico em forma de “V”, isto é, uma queda expressiva da atividade entre abril e junho seguida por uma recuperação desde julho. Colocam-se manchetes nos jornais, passando esta idéia, naturalmente referendada pela opinião técnica de economistas, sejam do mercado financeiro, sejam os conhecidos por trabalharem com análise de conjuntura. É fácil construir uma manchete e começar a discussão de uma idéia que interesse. E é muito bom para os negócios em geral que o clima de pessimismo seja substituído pelo de otimismo; isto vale para as vendas do comércio, para os anúncios na mídia, para os serviços de publicidade etc.

A questão é se tal idéia se sustenta nos fatos e se o futuro imediato não vai lhe desmentir. Claro que o simples anúncio da recuperação em “V” traz embutido um subterfúgio, qual seja, ninguém arrisca dizer quando a perna direita da letra mágica atingirá a mesma altura da perna esquerda, ou seja, quando a economia recobrará o mesmo nível de atividade de antes da paralisação pela pandemia. Nestes termos, anunciar apenas o “V” diz muito pouco, visto que em algum momento do futuro, sabe-se lá quando, voltaremos ao ponto de partida, sempre lembrando que neste ponto de partida, no primeiro trimestre de 2020, produzíamos 6% menos que no primeiro trimestre de 2014, antes da última recessão. É bom não perder de vista esta informação, só para se ter idéia do tamanho do buraco em que estamos metidos. Numa figura de linguagem bem apropriada, alguém lembrou nestes dias que em 2020 começamos a cavar um buraco a partir da base do buraco anterior.

Voltando ao “V”, recentemente, o próprio Banco Central refez suas projeções para o desempenho da economia brasileira em 2020 e 2021 e divulgou que neste ano teremos um recuo de 5% – melhor que as projeções anteriores, que eram abaixo de 6% negativos – e no ano que vem haverá um crescimento de pouco mais de 3%. Logo, um “V” assimétrico. Nesta mesma Coluna, no dia 3 de agosto, eu já havia trazido a discussão sobre o formato da retomada; lá se concluía que, na melhor das hipóteses, o formato seria mais parecido com a logomarca da Nike ou com o símbolo da raiz quadrada, uma queda seguida de uma recuperação parcial e, logo depois, estabilidade, mas abaixo do ponto de partida.

No início de agosto discuti mais detidamente o que me parecia constituir entraves à recuperação do consumo das famílias, seja pela elevação do desemprego e da informalidade, seja pelas suas consequências, como a queda do rendimento médio e a insegurança quanto ao futuro. Estas variáveis travam as decisões de consumo, em especial as que dependem de crédito, como nos casos de bens de consumo duráveis, em geral com valores mais elevados. Agora, passados quase dois meses, já se sabe que o auxílio emergencial foi estendido por mais quatro meses, até dezembro, mas com valor reduzido pela metade, o que trará um impacto não desprezível sobre o consumo, principalmente de bens de primeira necessidade. Também começam a se esgotar os recursos sacados do FGTS, do seguro desemprego e do adiantamento do 13º salário. Assim, o quadro de expectativas para o futuro imediato do consumo não é muito otimista.

Vale aqui arrolar também aspectos que impactam as empresas. Muitas delas, de pequeno porte, já desapareceram para sempre, diante da falta de fôlego financeiro para suportar a parada. Outras, que tiveram aprovados seus pedidos de financiamento para capital de giro e para reduzir jornada de trabalho ou suspender contratos de trabalho, logo vão começar a ter que cumprir os compromissos destas opções. Como fazer, se seus consumidores não aparecerem para reforçar o caixa? Quantos dos seus trabalhadores com contratos suspensos ou jornadas reduzidas vão ser dispensados na retomada? Haverá recursos financeiros para a hipótese extrema da demissão destes trabalhadores? E as empresas que postergaram o recolhimento de impostos terão capacidade de pagar agora as obrigações do passado somadas às do momento atual, numa dupla carga de tributos? Vale a mesma pergunta para as parcelas de empréstimos que o sistema financeiro congelou nos meses de auge da paralisação e agora vão ser cobrados.

Não vejo motivos para otimismo nesta retomada, nem pelo lado dos trabalhadores e das suas possibilidades de consumo, nem pelas empresas e suas enormes dificuldades financeiras. A pressão sobre o Governo, para relaxar parâmetros fiscais e, com isso, prorrogar ajudas em geral, será imensa. Porém, como se sabe, o Ministério da Economia preza demais os resultados fiscais. Resta o subterfúgio, já que ninguém que defendeu o formato de “V” afirmou quando a perna direita alcançará o ponto de partida da atual recessão.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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