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27 de novembro de 2017
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12:05

Aposentadorias do setor público versus setor privado: manipulação e matemática

Por
Sul 21
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Aposentadorias do setor público versus setor privado: manipulação e matemática
Aposentadorias do setor público versus setor privado: manipulação e matemática
“Há vários anos, criticar servidores públicos e prometer demitir e fechar instituições públicas é um caminho fácil para líderes políticos desqualificados buscarem apoio”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Flávio Fligenspan

Neste mês de novembro, depois de se livrar da segunda denúncia de corrupção da PGR, trocando apoio por cargos e liberação de verbas em emendas, Temer resolveu fazer sua derradeira tentativa de passar algo que ele possa chamar de Reforma da Previdência, para registro histórico. Suavizou as medidas para tornar aceitável aos parlamentares votar em algo tão impopular, com o agravante de ser um projeto do Governo mais reprovado da história do País. Mesmo assim, parece que não vai conseguir nada.

A novidade desta última tentativa, exposta maciçamente nos meios de comunicação, é um apelo à ideia de “acabar com os privilégios” dos servidores públicos que se aposentam com salários integrais e, em média, mais altos que os dos trabalhadores do setor privado. Desta forma, os servidores públicos aposentados custam proporcionalmente muito mais aos cofres públicos do que a grande massa dos aposentados do setor privado. Na visão do Governo, esta mensagem ajudaria a granjear o apoio popular e “amaciar” a posição dos parlamentares, visto que a população aceitaria um voto de “sacrifício” de deputados e senadores, desde que tal voto realmente reparasse a injustiça dos “privilégios”. Há vários anos, criticar servidores públicos e prometer demitir e fechar instituições públicas é um caminho fácil para líderes políticos desqualificados buscarem apoio. Eles servem-se da ignorância da população para desviar o foco do que realmente interessa.

Sobre o “privilégio” amplamente anunciado, inclusive por economistas considerados técnicos especializados em previdência, de a média dos vencimentos dos aposentados do setor público ser maior do que a média do setor privado, me ocorreu o seguinte exemplo. Suponha um médico de carreira (concursado) do setor público que atende num posto de saúde ou num hospital uma média de dez pacientes por dia. São pacientes de baixa renda, trabalhadores de pouca qualificação e baixa escolaridade, como a maioria da população brasileira. Provavelmente, estes trabalhadores ganham uma remuneração equivalente ao salário mínimo ou algo próximo disso, com o agravante de que nem sempre estão empregados e nem sempre com carteira assinada, ou seja, não contribuem regularmente para a previdência. E isto ocorre não por sua vontade, é claro, mas pelas contingências do funcionamento da economia brasileira, com seus ciclos de alta e baixa, sua tradicional informalidade etc.

Pois bem, tal médico executa sua tarefa, nada fácil pelas condições conhecidas, durante trinta anos, ao longo dos quais atende regularmente cerca de dez pacientes por dia, todos trabalhando no setor privado e todos com as características descritas no parágrafo anterior, inclusive a remuneração próxima ou igual ao salário mínimo. A remuneração média do médico durante sua carreira, dada sua especialização e seus muitos anos de estudo, corresponde a, digamos, seis salários mínimos mensais. Ao final de muitos anos de trabalho não contínuo – ora com atividade regular e registrada em carteira, ora sem trabalho ou na informalidade – “o paciente padrão” deste médico pleiteia sua aposentadoria pelo INSS. O médico, por sua vez, faz o mesmo pedido ao órgão competente do serviço público (federal, estadual ou municipal).

Agora todos estão aposentados, médico e pacientes. Seguindo com o número do exemplo, são dez cidadãos agora aposentados com uma remuneração igual ou muito próxima do salário mínimo, que foi a remuneração média ao longo de suas vidas laborais. E o médico estará aposentado com seu salário integral (nem sempre é bem assim, mas algo próximo disso), isto é, um valor correspondente a seis salários mínimos ou um valor semelhante a este. É claro que o exemplo simplifica várias situações e aproxima valores, para facilitar o raciocínio. Conclusão, um único médico representante do funcionalismo público recebe uma aposentadoria que é seis vezes maior que a de cada um dos dez aposentados do setor privado, “evidenciando um flagrante privilégio” e, porque não dizer, “uma injustiça”, dado que as aposentadorias do setor público se revelam aos olhos da população muito mais altas do que as do setor privado. Neste sentido, a propaganda do Governo estaria correta. Só que não é bem assim; a propaganda oficial esconde, argutamente, o fato de que a contribuição do servidor público incide sobre uma remuneração em média maior e por um percentual muito maior que a do setor privado e que este percentual é calculado sobre seus vencimentos integrais, isto é, sem teto, ao contrário do que se verifica na previdência privada.

O que o Governo não diz é que a média dos servidores públicos tem mais escolaridade e mais qualificação que a média dos trabalhadores do setor privado, estes muito próximos da base da pirâmide salarial do País. O setor público, essencialmente prestador de serviços à sociedade, emprega muito mais pessoas com nível médio e superior, médicos, dentistas, engenheiros, advogados e professores. Consequentemente, seus vencimentos são mais elevados e suas aposentadorias, por óbvio, também o são. Não se trata de justiça ou injustiça, trata-se de matemática.

O exemplo descrito não pretende afastar o fato de que há distorções bem conhecidas em várias esferas do setor público, claramente identificadas como privilégios e injustiças, sem aspas. Isto é reconhecido dentro do próprio setor público. Mas não é isto que está em jogo neste momento, e sim uma manipulação da opinião pública para obter apoio a uma reforma que se quer impor à parcela mais pobre e sacrificada da população, sem discutir absolutamente nada do lado da receita pública, esta sim hipertrofiada de injustiças e privilégios.

Flávio Fligenspan é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.


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