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8 de agosto de 2017
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10:45

Christopher Nolan e o pequeno épico da fuga

Por
Sul 21
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Christopher Nolan e o pequeno épico da fuga
Christopher Nolan e o pequeno épico da fuga

Enéas de Souza

A novidade de Christopher Nolan em Dunkirk está na concepção da obra. Em primeiro lugar, é um filme de guerra que trabalha sobre a fuga – e não sobre o ataque ou a defesa. E a partir desta visão, a ética muda de lado, deixa de ser a ética da aventura, onde apesar das dificuldades e dos espatifares do combate, o que importa é o itinerário da ação e do percurso, onde os imprevistos e as invenções da inteligência, os temores e os labirintos da coragem, etc., entram nos personagens e nas situações. Aqui não, ao contrário, não há gloria dos atos nem da aventura. E, muito menos, não poderíamos invocar a aventura da fuga. Trata-se do desespero do escapar, do contrabando do fugir. Portanto, é correr, é se esconder, é driblar a bala – e afastar-se da explosão da morte.

Pois é aí que segue: a morte está no encalço do guerreiro, do guerreiro em fuga. Essa ideia atravessa o filme. Contudo, junto vem uma outra em contraponto: a solidariedade do povo. Os barcos, os pequenos barcos, que atravessam o Canal para buscar a retirada dos soldados em Dunkirk, são as figuras da força fragmentada do povo, que se faz unidade no começo e no meio do mar. E aí, nessa dinâmica da solidariedade, o pai (Mark Rylance), que perdera um filho na RAF, com um outro filho (Harry Styles) e um amigo (Barry Keoghan) viajam para ajudar a evacuação da praia. Essa onda de fraternidade tem um ponto insólito, o lado épico do homem comum, o sentimento de estar com.

Mas, como é que isso se traduz em imagens. Porque cinema é história em imagem. E a imagem se organiza a partir da estrutura da obra. Veja só, caro leitor: o filme se estrutura a partir não só da fragmentação do tempo (uma hora, um dia, uma semana), mas também do espaço: terra, mar e ar. E com o fogo lambuzando essas matérias do filme, insinuando de desastres as cenas. E o espaço tem muito a ver. Um exemplo: quando o personagem Tommy (Fionn Whitehead) foge para a praia, sob a dança em fúria e raivosa das balas. Temos um belo travelling quando ele corre na direção do lado inglês. O travelling trabalha a ética da fuga. A morte sem razão está chegando com o seu hálilto indesejável. E este travelling que desemboca em planos gerais da praia, deserta, ordenada para a retirada dos soldados, visualiza desabusadamente o vazio, a nadificação, o desmanche da presença humana. Só se expõe quase a terra nua. E de outro lado, os aviões revelam o ar, onde tudo se move instavelmente, onde só a carlinga é protetora frágil dos impactos das balas e dos foguetes. E o que a gente capta é o bailado da destruição, onde os voos são impulsos para que os aviões se tornem objetos caindo no ar, rumo ao solo do mar. O terrível do ar é que volátil, sem consistência sólida, se mostra em queda livre. Um tiro certeiro se declina numa derrubada para o mar. E o piloto com sua máscara parece a própria morte, seja atacando os inimigos, seja sendo atacado por eles.

E há o mar. É ali que se dá a substância que se movimenta, que se transforma, que envolve os homens nessa carnalidade viscosa e progressivamente dolorosa. A água afoga e não afaga os homens. A água desarma os combates, não é companheira, é mais ameaça, muita adversidade – e agora, intensamente adversária. E na sua profundidade, cemitério de navios e homens. Contudo, brota à superfície o óleo derramado dos barcos que faz do mar uma possível lareira e um vulcão de chamas. E é nesse ambiente, nessa atmosfera, que os pequenos barcos conseguem a luta épica, a luta do pequeno épico, a luta do velejador, da ajuda aos seus compatriotas sobreviventes. O cenário, então, tem um papel de definição do homem. O homem inglês está em fuga, está tentando chegar a algum lugar do espaço e de suas múltiplas matérias: terra, mar e ar. E a matéria volúvel do fogo desenvolve o elemento ameaçante para mudar os contornos de forma da própria matéria. E é isto que o cenário faz, se metamorfoseia para des-situar, descolar, deformar, sumir e engolir o personagem. Não há como se enganar: a guerra faz da civilização (da tecnologia, por exemplo) um instrumento da selvageria.

E aqui vem a linhagem da fuga. A fuga da terra como saída do quase inexorável, do irreversível, através da coragem de voltar para a casa, de tentar se defender, de tentar se recompor, para se reposicionar de uma situação limite e fulminante. O povo percebeu bem, percebeu a pedra mutante. É exatamente isso que promove o inesperado reconhecimento, que surge pela mídia e que exalta inclusive a figura do menino morto. Daí, uma outra novidade de Nolan, o critério de aplauso não é o poder constituído, mas sim o poder constituinte, ou seja a população que compreendeu a força inglesa de resistir. Certamente, há uma louvação inglesa, mas não a dos generais, a dos políticos, e sim, aquela do povo e da população. O ponto artístico do diretor é exatamente este: da guerra se foge, não por covardia, mas por superioridade do inimigo. E a derrota só tem um convívio plausível, fugir, mas resistir.

Todas essas nuances colocam dificuldades para o ritmo do filme. A complexidade dos micro-ritmos – da fuga das balas alemães, da corrida da padiola, do movimento dentro do navio, do jogo de despedida de afastamento do oficial da marinha (Kenneth Branagh) e do exército (James d´Arcy), dos dramas no barco de Mark Rylance, do barco varejado e furado de balas, do retorno no trem, etc.. – afetam o encontro de um ritmo global da obra, para expressar a ideia da fuga da guerra que preside as imagens. Porque o ritmo e respiração de um filme de guerra de ataque ou mesmo de defesa tem mais ordenação na montagem do que num ritmo de um filme de fuga, onde os equívocos, as audácias, as reviravoltas, as surpresas cortam possíveis tendências de ação. E a razão floresce: o ritmo aqui é de desordem. E no caso de Dunkirk há a perseguição do sentido da morte habitando o mesmo espaço da ânsia de escapar. E há os solitários múltiplos pequenos épicos existindo sem exaltar o triunfo glorioso do Estado. Com isso caminhamos para sublinhar que a audácia de Nolan foi transformar um filme de guerra num filme de fuga, tratando a guerra do ponto de vista dos soldados e do povo. O que tira da imagem a possível louvação da vitória dos homens do poder (apesar do discurso final).

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Enéas de Souza é crítico de cinema e economista.


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