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20 de fevereiro de 2014
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14:57

De como as finanças dominam a economia

Por
Sul 21
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Enéas de Souza

Aos amigos e leitores que colocaram suas perguntas nos comentários ou pessoalmente, à medida do possível, vou respondendo, vou assuntando, vou tocando o meu bloco e meu samba econômico. Hoje, vou responder a um deles.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come

Franklin Cunha me pergunta se estamos na fase do Oduvaldo Vianna Filho, o autor de teatro que deixou célebre essa frase, título de uma de suas peças: Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Eis o que Franklin escreve e questiona sobre meu artigo De onde vem a face inquietante da economia?, publicado aqui no Sul21, no dia 23 de janeiro passado: “Teu esclarecedor texto vem nos desvendar o Universo atual da economia mundial, mas a sensação final que me ficou é que se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Ou não?”.

A frase de Oduvaldo Vianna Filho é de um alcance imenso, como a frase de Shakespeare dita por Hamlet: to be or not to be. De fato, eis a questão. É notório, no circo da economia que os tambores estão rufando. Os trapezistas estão no alto e vão se lançar no espaço em busca do trapézio que balança. Na economia, eles buscam a segurança, mas ela não existe. O salto será sempre feito sem rede. Não se sabe se os trapezistas vão sair bem do seu número. Isso quer dizer o seguinte: a crise de 2007/2008 desorganizou totalmente uma economia especulativa e uma economia produtiva mundial em andamento. (Não se pode esquecer que as corporações, embora atuem – predominantemente, mas não exclusivamente – na esfera financeira ou na esfera produtiva, são todas financeirizadas, como já frisamos acima. E são todas regidas pelo princípio da governança corporativa, que sublinha a necessidade de alcançar o maior valor para as suas ações. Então, o leitor precisa distinguir que mesmo a economia sendo totalmente financeirizada, as companhias podem aplicar seus recursos em empresas inseridas na dinâmica financeira ou na dinâmica produtiva).

E a economia funciona deste modo: crescimento, crise, rearranjo e novo crescimento até uma nova crise. Estamos na primeira crise e na fase do rearranjo. No fundo, o cenário circense evidencia uma crise de transformação das atividades econômicas. Quando os trapezistas se projetam no vazio, eles estão vivendo a fenda, a ruptura do atual padrão de acumulação, que define e se caracteriza como a 2ª Revolução Industrial. A crise deste momento não é uma crise passageira e nem pequena, é uma crise de longo prazo. É preciso mudar todo o patamar e arquitetura da economia e ver o surgimento de novos setores líderes e reformular o encadeamento do todo o edifício econômico.

Onde é que está o bicho?

Então, o salto dos trapezistas se dá na luta entre a antiga ordem e o surgimento de uma nova. De tal modo que se instala e passa pela vida econômica uma desordem, com a destruição da primeira e um processo de organização da segunda. E essa metamorfose não se faz sem luta, sem combate, sem violência. E, sobretudo – o que é angustiante – há uma atmosfera de um tempo prolongado. Digo bem: a crise se espicha. E com um agravante: não se sabe se ela vai dar em algum lugar e quando atingirá uma nova realidade. Com esse panorama, cresce de intensidade o conflito inexorável. Nos anos 30, a questão do capitalismo e do comunismo se afigurou com uma contundência gigantesca. Desta feita, me parece que o horizonte do comunismo não existe, ao menos no momento presente. O que se pode concluir – e é quase simplória esta conclusão – é que estamos na direção de mais uma etapa do capitalismo. E nada nos assegura (porque uma economia não segue um caminho e um plano determinado previamente, ela tem apenas tendências) que vai dar num novo patamar desse modo de produção. Esse será a conseqüência de várias decisões e vários resultados, pois se trava uma luta social, política, econômica, ideológica, e cultural de grande vigor no presente histórico. Se o querido leitor tem dúvidas, ande pela cidade e sinta a tensão das ruas, das pessoas, existe quase uma raiva social fremindo a cada instante.

Temos uma crise surda e quase sem voz, uma crise que é palpável em todas as cidades do mundo. E os jornais e a televisão do mundo – e a brasileira também – nos dizem: a culpa é do governo! (Ouve-se uma forte e estrondosa gargalhada vinda dos deuses do universo).

Dito isso, é preciso reforçar a idéia de que o processo da crise é longo, resistentemente árduo, sujeito a problemas incontornáveis e sujeito a adversidades as mais diversas. Vivemos num mundo de grande incerteza e grande instabilidade, as adversidades imperam.

O bicho está na porta. Para onde vamos?

A primeira adversidade, que já começamos a falar, é essa: mesmo que se admita que o capitalismo possa dar mais um salto, não se sabe se ele vai conseguir ou não. E para onde ele vai? Desconfia-se. Mas, e nós: ficamos ou fugimos? O que está posto é o seguinte: antes de tudo, o bicho tem cara. Chama-se, com ênfase merecida, a hegemonia das finanças. Ela continua absoluta, imperial, tripudiante, mesmo que esteja em processo de reformulação. E mais, ela tem todo o apoio do mais poderoso estado contemporâneo, que não só a salvou da ruptura de 2007/08, como forneceu ativos financeiros públicos e recursos monetários para limpar os seus balanços. E afetar, como vêm dizendo Dilma e Mantega, todas as demais economias.

E o FED faz isso com a ligeireza de uma estratégia clara: sustentar as finanças nessa nova ordem. E sustentar as finanças é sustentar os Estados Unidos, é sustentar o capitalismo financeiro, via sua articulação, geralmente favorável, com os demais bancos centrais do mundo. E com isso, ele está assegurando o retorno da invenção de novas formas de especulação para dar lucratividade ao setor. Essas novas formas não estão ainda plenamente constituídas, inclusive por causa de rearranjos dentro do bloco das finanças, como veremos a seguir. Cabe assinalar que alguns traços já apareciam no horizonte mesmo antes da crise, e que agora vão se apresentando com mais e surpreendente nitidez. São exemplos:

(1) a entrada forte no mercado financeiro das casas de private equity (que venderam recentemente, com grandes lucros, empresas compradas há anos fora da bolsa). Nesse momento, estão transformando profundamente suas atividades e se inserem, com vigor, em operações de bancos, principalmente no mercado de crédito – que, naturalmente, seria mais condizente com as atividades do setor bancário. Sua audácia tem sido considerável inclusive emprestando recursos para empreendedores que atuam arriscadamente. Por não serem bancos passam a operar com liberdade regulatória inquietante, pois não estão submetidas às regras desses entes econômicos. O sucesso é a marca delas, e estão também fazendo muito e muito dinheiro, proporcionalmente mais que os falados bancos to big to fail. Apesar de serem menores diante desses, muitos analistas e diversos executivos financeiros acreditam que possam se constituir em instituições de alto potencial na área das finanças (they are big and powerful, diz o Financial Times);

(2) o retorno especial da atividade com derivativos. Pois existe uma grande novidade que está acontecendo quando as instituições financeiras estão emitindo papéis em cima de aluguéis residenciais e comerciais, o que pretendem serem títulos muito mais seguros que os anteriores que originaram a crise;

(3) a integração da especulação dos bancos no corpo de processos produtivos globais, como no caso dos produtos minerais, ativando uma silente ação manipuladora no alumínio, com a compra da bolsa de metais de Londres, com a aquisição de armazéns para estocagem do produto, com a compra de empresas que negociam o metal, etc. Isso revela todo o ardil das operações da nova finanças. (O bicho está aí de goela aberta.)
O bicho está na porta. Para onde vamos? (II)

A segunda adversidade está na transição da economia na esfera produtiva. E aqui está acontecendo muita coisa. De um lado a progressiva transformação do espaço de sua reprodução e acumulação. Hoje, ele está se armando sob a dominância das empresas estatuídas em cadeias de valor, que, como já vimos, são globais. E que vão transformar a economia como um todo, porque elas estão seguindo na direção da 3ª Revolução Industrial, e no sentido de uma economia que está deixando de ser nacional, que está se autonomizando e já está se desenvolvendo de forma mundializada.

Isso introduz, de outro lado pelo menos, uma dificuldade de organização das “economias nacionais”. Na verdade, poderíamos dizer que a economia nacional é a economia capitalista que se desenvolve no território de uma nação. O que caracteriza uma economia mundial que passa por dentro desse território conectando as empresas nativas não-mundiais contidas nesse espaço. E isso em qualquer parte do mundo. E só o Estado Nacional pode, com apoio da população, negociar uma economia mundializada com algum sucesso no seu espaço financeiro e produtivo, comercial e de serviços, de modo que se construa um processo de desenvolvimento que atinja igualmente a sociedade local.

O bicho é do tamanho da economia

É preciso acentuar que as novas relações entre as corporações que atuam nas esferas financeiras e produtivas não estão suficientemente regradas neste momento, mas começaram a ser definidas. A questão pode se colocar assim: para as finanças, não existem ativos que não sejam financeiros. Mesmo os ativos reais como plantas produtivas, bens industrializados ou naturais, processos produtivos e tecnológicos, e a própria tecnologia, são tudo ativos financeiros. Isso prossegue também se examinamos as moedas das múltiplas nações: tudo, simplesmente tudo, são ativos financeiros e podem estar sob o domínio das finanças.

E se a gente olhar bem, elas, as empresas financeiras, mesmo antes da crise, já estavam começando a atuar além do próprio sistema financeiro. Basta ver as especulações com derivativos originados da indústria imobiliária, por exemplo. E agora, vamos encontrando uma outra trajetória, também se estendendo pelo espaço mundial e por todas as dimensões, graças ao processo de desregulamentação das finanças ocorrida desde o final do século XX. E o esquema avança. Temos agora, mais do que nunca, uma possível fusão – principalmente, no caso das finanças de origem americana – entre elas e as firmas ancoradas no setor produtivo. Elas, as finanças, se tornam proprietárias – disfarçadamente ou não – de empresas ao largo da cadeia global de valor; elas se instauram, por exemplo, como proprietárias de bolsas de mercadorias e de empresas que atuam nessas bolsas, como já falamos acima, e etc. Ou seja, o efeito será complexo, pois é obvio que a atuação nesses mercados vai instaurar uma pressão de preços especulativos. E isso estimula mais e mais especulação, e o preço sobe numa espiral explosiva até que desabe por uma desconfiança qualquer do mercado.

Ou seja, está em marcha uma combinação econômica que vai dominar uma economia mundializada, cuja conexão finanças e produção, hegemonizada pelas finanças, vai atravessar uma área de turbulência com perspectivas especulativas. A pergunta é: isso vai se constituir como uma estrutura definitiva? Quais as repercussões desse encontro: teremos uma economia insistentemente movida pela especulação? Teremos mais do que agora uma economia instável? E os Estados, o que vão fazer? E a proposta de Minsky, de estabilizar uma economia instável, será viável?

A estratégia do bicho

Se vocês estão assustados, um aviso: o filme vai continuar. Não querendo aumentar o susto, mas já aumentando, colocamos na tela o verdadeiro andamento da financeirização do mundo. Está em processo um mundo supranacional e mundializado. E o segredo está aqui, ele expõe o desejo das finanças. Desejo de um mundo globalizado sem um Estado Mundial. E com o objetivo, isento de dúvidas: a vontade de ter mínimos controles possíveis, visando quase nenhuma barreira às finanças voluptuosamente desregulamentadas. O máximo que elas provavelmente poderiam admitir, não passa de um Banco Central Mundial. E esse projeto já está em ação, e vem sofrendo testes. E o modelo já faz a sua primeira escala. Vejam a Europa, onde não temos um Estado europeu e existe apenas um banco central para a zona da Europa. Portanto, o que se avizinha para a 3ª Revolução Industrial, no nível das instituições, é uma economia financeira atuando em todos os mercados, abrindo imensos progressos na lucratividade, apoiada por uma rede de bancos centrais e buscando o domínio das mais amplas cadeias globais de valor, através, inclusive, de fusão com as empresas da esfera produtiva.

E por que não um estado mundial?

A questão enunciada acima tem uma força mais que inquietante, tem a brutalidade de uma ameaça sob a forma de tocaia econômica. A resposta é simples: porque elas já dominam – pela dívida e por governos nacionais dominados a seu favor – os espaços necessários de controles parciais, e que deixam livre, desgovernado, pronto para ser centro de uma acumulação planetária financeira, o espaço mundializado em construção. Um Estado Mundial, ao menos agora, poderia ser um obstáculo e um muro e uma barreira para a emergência de um poder econômico inigualável. Nessa trajetória, as finanças teriam absorvido um poder político capaz de, pela economia, subjugar mais amplamente os Estados Nacionais ao seu projeto do capital, gerar automaticamente mais capital. Se isto é viável ou não, depende de dois fatores: se essa estrutura se sustenta sem um comando político público mundial e se a reação da política, dos Estados e da sociedade será capaz de enfrentar a cara do bicho.

Cá pra nós, Franklin

Cá pra nós, Franklin, há um cheiro da frase de Oduvaldo Vianna Filho, sim. Mas, na História, embora uma parte esteja determinada, a outra é feita com liberdade pelos grupos sociais e pelos homens políticos e históricos do momento. Saberão esses homens e esses grupos decidir e combater pelo melhor para todos ou pelo menos para a maioria das populações? Que combinações políticas surgirão para se defrontarem neste comprido e demorado momento decisivo? A pergunta não é só para ti, Franklin, mas para todos. No caso brasileiro, a gente já viu no meu artigo anterior – Dilma no caminho de uma nova estratégia – como ela está encaminhando a resposta de seu governo. As eleições vão decidir se queremos um Estado a favor da população e negociando com o capital ou um Estado jogando a favor das finanças incondicionalmente. De novo, encaramos a questão do bicho.

A questão política fundamental

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. É possível reverter a posição? Pode-se pegar ou comer o bicho? E tudo se dá no percurso cíclico, quando os trapezistas se lançam no espaço em direção ao trapézio. As próximas cenas do circo econômico estão desenhadas. Fica a dúvida: os corpos chegarão ao trapézio?

(Esta parte é para Cesar Busato e Marino Boeira. As excelentes perguntas que vocês me colocaram, estão parcialmente respondidas aqui. Em próximos artigos, vou tentar completar o que penso.)

(*) Enéas de Souza é economista, psicanalista e crítico de cinema


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