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23 de janeiro de 2014
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10:20

De onde vem a face inquietante da economia?

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Sul 21
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De onde vem a face inquietante da economia?
De onde vem a face inquietante da economia?

A economia brasileira está sofrendo uma áspera torção na sua dinâmica inserida na economia mundializada. É preciso pensar o que significa este momento histórico, já fatalmente decisivo. Estamos noutro ponto do ciclo econômico, estamos num pós-desabamento da crise de 2007/08. O que significa dizer, olhando com sagacidade, que tudo está mudando, sorrateira e consistentemente. E de difícil percepção. Há que refinar os instrumentos de análise. E o que está se alterando ocorre no nível da estrutura, embora os atores (empresários, analistas, banqueiros, formuladores de política econômica, etc.) procurem pensar que a solução está nos elementos da conjuntura, como a taxa de juros, o câmbio, as políticas setoriais imediatas, o crédito, etc. Não que esses fatores não tenham importância. Claro que têm. Só que uma conjuntura não se resolve somente em termos de conjuntura. É a partir da estrutura que se organizam suas respostas. E a estrutura que estamos falando é a da economia mundial, pois é essa que determina, em última instância, a estrutura da economia brasileira.

AS FINANÇAS E O PODER

Antes de tudo, a parte ascendente do ciclo da economia mundial já passou, a ruptura se deu em 2007/08 e entramos, após o período de desenlace, numa nova fase da descendente cíclica. A resolução de uma crise de longo prazo leva um bom tempo e desenvolve-se num processo onde temos, por enquanto, linhas e esboços de tendências de um novo padrão econômico, de um padrão de acumulação distinto. Constata-se a figura do novo arcabouço e sabe-se de direções novas e de diversos impasses. A crise trouxe, no entanto, um momento de crucial importância para as finanças. Pode-se dizer que o setor encontra-se já além da convalescência, salvo da hemorragia dos títulos podres. Continua em tratamento antes de poder, novamente, conduzir o processo econômico.

O que é que aconteceu? Primeiro, dois bailouts (pacotes de salvação) e três quantitative easings (facilidades de liquidez) que, felizmente, limparam essa podridão dos bancos e das instituições financeiras. À custa de quem? Do Estado e da população. O problema é que Keynes tem razão. Em certos momentos, as corporações, sejam financeiras ou produtivas, têm preferência por ficar com o dinheiro na mão, têm “preferência pela liquidez”. E esse é o caso do momento. E fazem isso porque o horizonte da acumulação está sem sol e sem clareza. Uma nuvem cobre o destino do futuro da riqueza.

E a razão é que as finanças, tendo saneado seus balanços, retomaram as velhas aplicações e os mesmos produtos financeiros. O setor lucra, mas não avança. O que quer dizer isso? Não basta a repetição das fórmulas de sucesso, essas só permitem o retorno dos mercados. As finanças não vivem nem crescem com mercados “normais”, se sustentam unicamente com uma especulação crescente, numa tendência à exuberância. Depois das intervenções do FED, as finanças tentam repetir as fórmulas de sucesso; todavia, a dinâmica da economia financeira não se desenvolve ainda na direção de um “boom” como antes. É preciso que isso fique muito claro. Não é que as finanças não tentem repetir as fórmulas exitosas, não é que elas não estão aproveitando as operações do FED. O problema é que esse processo não deu um crescimento especulativo consistente e virtuoso, a tal ponto de encadear um movimento cíclico voluptuosamente ascendente. Por quê?

As finanças não querem atender a empréstimos produtivos porque são pouco rentáveis. Não conseguem “produzir” novos títulos colocáveis, como nos bons tempos, porque ninguém mais quer ser enganado. Não alcançam tanto lucro com commodities porque a demanda por elas caiu. Não lançam mais ações no mercado, nem movimentam mais a Bolsa com a voracidade da época dos movimentos ascensionais, porque a nova estrada capitalista não está plenamente constituída. Não fazem com que os Estados se endividem mais porque eles chegaram ao limite de seu endividamento (dos Estados Unidos à Grécia).

Isso não quer dizer, no entanto, que as finanças perderam a liderança da economia mundial. Pararam, se recuperaram, estão mudando, mudam e continuam na liderança. Só que tem que haver novas conexões econômicas para que elas possam dar uma nova arrancada. Claro, muitos gostariam que elas perdessem o fôlego e fossem dominadas, subjugadas. Mas, um setor que domina um Estado – estruturalmente, mas também com lobbies e propinas ocultas – só pode ser derrotado se outro setor passa a dominar o Estado. E não é esse o caso. Veja nos Estados Unidos: quem domina é o FED e o Treasury.We trust in God. And God save the finance! Isto quer dizer que o Estado é financeiro.

A ESPERA DAS FINANÇAS PELA PRODUÇÃO

O capital na sua expansão se desenvolve em múltiplas áreas: finanças, produção, comércio e serviços. Se a hegemonia no capital é financeira, a sociedade não almoça, nem janta, nem toma café, nem se desloca de um lugar a outro, apenas negociando títulos financeiros. Eles não são alimentação, nem veículos de transporte, nem matéria das infraestruturas. Ou seja, há necessidade vital da produção. Há necessidade da própria expansão da acumulação de capital na atividade produtiva. E a produção funciona dentro de uma arquitetura econômica e se dinamiza no tempo, sujeitando-se a altos e baixos cíclicos, a curto e longo prazo. Portanto, caros leitores, o escriba aqui pensa que estamos enrolados num ciclo longo, onde a arquitetura da economia vai variar e já está entrando num novo estilo e numa outra forma.

E observo que aparecem nesse processo distintas ordenações, diferentes encadeamentos e conexões matizadas. A economia produtiva está se transformando, sim, está mudando, desde o fim do século XX, para outra direção. Temos novas áreas de expansão. É notório que já emergiu a liderança do setor das novas tecnologias de comunicação e informação. Mas fazem parte da metamorfose os novos materiais, a biotecnologia, a nanotecnologia, a indústria microeletrônica, a indústria farmacêutica, etc. E essa nova arquitetura demora para se construir e se consolidar. Os velhos setores – como automóveis – e os novos setores – como a informática – têm que se ajustar como as letras de um alfabeto. Só aí o ciclo econômico entrará num processo virtuoso e a 3ª Revolução Industrial encontrará a sua dinâmica vigorosa E as finanças irão se aproveitar disso e vão surfar quando o novo padrão de acumulação produtivo estiver constituído. E haverá uma nova e forte expansão especulativa, inclusive incorporando novas ações, inventando novos produtos, especulando mais ainda com commodities, apoiando projetos de infraestrutura, etc. Um novo e intenso e borbulhante crescimento expansivo das finanças é possível, a partir das soluções econômicas para a produção. Será a passagem para uma nova etapa do capitalismo.

(Estrutural e historicamente, o capitalismo funcionou de modo cíclico com estruturas semelhantes. Contudo, o leitor perguntará na sua inquietude: será assim? E quando esse novo mundo acontecerá?)

O fato é que, para o capitalismo ir adiante, finanças e produção tem que se acharem. O caminho para isso está sendo palmilhado. Se insinua uma terceira questão que faz sentido: existirão forças que podem se opor a essa união? Um dia, o grande economista brasileiro Ignácio Rangel disse a seus alunos: “Um ciclo não é matemático, ele é político. E quando as forças da política se acertam, nada pode impedir a sua expansão”. Resta pensar: quais são os indícios de um novo acerto? E esse acordo já esta amarrado? A forma do pacto depende da História concreta, Giovanni Arrighi pensa, no fundo, que ela pode ficar indefinida e não ocorrer.

A PROFUNDA NOVIDADE DA ECONOMIA CONTEMPORÂNEA

Mas, há uma profunda novidade. Florestan Fernandes já nos dizia isso lá pelos anos 1970/80: o capital, no seu processo de acumulação, está além dos territórios nacionais, atravessa esses territórios e se inscreve no seu interior, ligando-se muitas vezes a capitais locais. Todo mundo consegue se dar conta imediatamente de que essa penetração está integrada ao que hoje chamamos de processo de mundialização. A economista de Sussex Carlota Pérez não deixa de registrar a conexão do capital global e do capital local. Trata-se de uma novidade absoluta que agora se tornou decisiva. É preciso bem entender o que estamos assinalando aqui. Se a gente ouvisse o que estava acontecendo em outros tempos – continuo trazendo citações – escutaríamos que Charles-Albert Michalet já descrevia a dinâmica da corporação capitalista na sua trajetória de expansão. Ouviríamos primeiro que, ela, de nacional, passava para um ou outro país e começava um processo internacional; depois, estava em muitos e muitos países, e já era multinacional. Só que agora, em minha opinião, houve um salto dialético, uma alteração profunda, uma ruptura produtiva, a corporação que atuava em muitos países, atingiu um ponto de autonomia. De nacional de base, sua regência, sua atuação, sua amplitude se localiza agora numa economia mundial. A corporação se tornou planetária. Ela não está em todos os países ou em todos os lugares, mas sua zona de comercialização abarca todo o mundo.

Então, vejamos: as finanças já eram mundializadas, pois atuavam em todos os mercados daqui e de lá, já tinham se tornado instituições financeiras mundiais. Pois agora o processo está acontecendo com as corporações produtivas. Como isso ocorre? Qual é a consequência? São essas as perguntas deste momento. As grandes corporações são empresas do planeta. Só que – já dissemos no parágrafo anterior – isso não quer dizer que elas estão em todos os países do mundo. O seu mercado é que é global. E o modo como se organizam essas empresas é sob a forma de cadeias globais de valor. Elas são um sistema complexo porque existem vários tipos de cadeias. O mais importante é que essas cadeias são mundiais, e se organizam por articulação, por conexão. E elas comandam e articulam e conectam as múltiplas firmas, que jogam os papéis da liderança empresarial, da concepção da produção, da plataforma tecnológica, do design, da montagem, da distribuição, de serviços, etc., numa forma que poderia se chamar de “espinha de peixe”. Elas se organizam por liderança e subordinação, de uma maneira que o poder das empresas–mãe é extremamente forte e determinante. E o efeito encadeado dessa organização atravessa e penetra muitos territórios nacionais, definindo mercados, visando sempre cobrir uma extensão produtiva-mercantil mundial.

Embora submetidas às finanças, as corporações produtivas têm igualmente prioridade financeira no seu dinamismo produtivo. São conduzidas pelo princípio do rendimento mais alto possível das ações para os inversores, o que quer dizer que essa regra ordena a dinâmica do conjunto das empresas das cadeias. As firmas contemporâneas visam sempre e sempre a transformação de seus produtos (sejam bens materiais ou intangíveis) na busca da valorização monetária. Nunca esquecendo que a dimensão financeira está articulada no coração de qualquer tipo de capital, seja ele oriundo das finanças, da produção, do comércio ou de serviços. O capital é multifuncional, é multidiversificado. É multipolarizado, é multiencadeado. Mas, sempre dominado pela riqueza financeira.

Agora, precisamos entender o movimento do capital: as cadeias de valor, embora passem por dentro dos territórios nacionais e tenham conexões com capitais nacionais e locais e realizem resultados no interior das nações, têm uma dinâmica mundial – e os seus resultados são mundializados. Neste momento, o comando das economias nacionais – e é isso que escandaliza mais do que nunca – tem uma hegemonia financeira e uma dominância de cadeias globais de valor que estão além das nações, dos territórios nativos. É como uma rede de água, ela atravessa todas as casas, está além do meu quintal. É esse poder que ameaça os países. Só quem pode ter uma reação, ainda que limitada diferencialmente, são os Estados nacionais. Claro, dependendo da correlação de forças dos capitais e das cadeias globais de valor, os únicos que podem obstaculizar a devastadora e anárquica expansão do Capital são os Estados Nacionais. A questão é: como o Estado pode se organizar para negociar com corporações mundiais? E como proporcionar a expansão da economia nacional: investimento, emprego, políticas sociais e renda? Certamente através de sua política econômica como derivado do seu projeto nacional.

(Lembrem-se da China.)

AS FRAÇÕES DE UM INTEIRO

Então, temos uma dupla situação: de um lado, a dinâmica mundial condiciona a dinâmica nacional. Ou melhor, a primeira se dá através da segunda. Ou ainda, essa comparece limitada às conexões com aquela. Olha aí, caro leitor, realidade do terrível na atual situação. E, de outro lado, os capitais nacionais de um país não têm autonomia face às cadeias globais de produção. Só têm autonomia aquelas empresas que, sendo nacionais, são também origem de cadeias globais de valor. Exemplo: a Petrobrás. Então, o espaço econômico de uma nação é constituído por essas múltiplas cadeias globais de valor que transitam através do território da nação e em conexões com empresas nacionais e arranjos produtivos locais, dentro de uma competição mundializada. Se olharmos bem, os espaços nacionais são compostos por inúmeras empresas multinacionais, empresas nacionais, empresas regionais, empresas locais. Só que as empresas nativas não têm como fugir, elas estão de forma direta ou indireta enlaçadas nas cadeias globais de valor, cuja origem são empresas mundiais. E os mercados nacionais de todos os países hoje se desenvolvem como frações do mercado mundial das ditas empresas mundiais que comandam as referidas cadeias.

A CARA DO LEVIATAN

O Estado mostra a sua figura, o seu porte, a sua envergadura quando ele tem, em primeiro lugar, um projeto nacional e econômico de inserção na economia mundial. É com esse projeto que faz suas negociações com os capitais mundiais e suas conexões nacionais. E nelas surgem suas possibilidades de organizar e administrar e regular, no interior do espaço econômico do território do país, aquilo que falamos acima: uma nova economia que amplie a renda, o consumo, o investimento, o emprego. E que, se possível, tenha vantagens comerciais de exportação em relação às importações, e ainda provoque superávits no balanço de capitais, no balanço de transações correntes, etc. E que, socialmente, se desabroche favorável à população desempregada ou de baixa renda.

OS MÚLTIPLOS CONFLITOS DA ECONOMIA

Entre outros problemas que existem, é preciso destacar que os conflitos são o resultado de uma competição macroeconômica aguerrida, já que temos, nesse nível, o destaque de, pelo menos, três concorrências. Primeiro, a concorrência intercapitalista, hoje caracterizada por uma concorrência financeira, produtiva, tecnológica, comercial e de serviços, centrada no conflito das cadeias globais de valores. Segundo, a concorrência interestatal, os Estados se batendo uns contra os outros. E terceiro, a disputa de poder entre Estado e Capital de modo geral, e entre Governos e Corporações, principalmente no plano da política econômica, espaço onde se estabelece um arco de alianças, de negociações, de lobbies, de conflitos, de adversidades. Enfim, um amplo arco de combinações e exclusões.

É dentro desse quadro novo – desse quadro instável e incerto – que a economia brasileira sofre suas pressões. Pois, de um lado, as finanças ainda não encontraram a definição do seu processo de acumulação, dando um tempo para puxar a economia mundial e a ampliação daquela atividade produtiva do interior dos países. E as cadeias globais de valor também ainda não consolidaram suas trajetórias, sobretudo, sua organização em função da nova arquitetura econômica mundial e dentro da revolução tecnológica em andamento. Completam o quadro as hierarquias de poder geopolítico, onde China aparece como grande personagem colorido e vibrante e Estados Unidos e Europa funcionam como personagem trôpego e fracionado. Aquela parece um fogaréu como Aquiles, e essas, vacilantes como Hamlet. Só que a geopolítica, embora ligada com a geoeconomia, sofre de outras determinações, que estão fora desta análise. De qualquer modo, um mundo que está como o nosso trânsito: caótico e engarrafado.

CONCLUINDO

Todo esse processo deságua no campo do investimento, do consumo, do emprego e da renda. E o ponto chave nesse momento, no Brasil, é que o investimento está emperrado por causa das dificuldades de infraestrutura que tem o país. Contudo, o governo já deu a partida com o regime de concessões, o que vai permitir uma aliança renovada do Estado Nacional e do Capital, sendo esse último representado, agora, pelo capital internacional e pelo capital nacional. Começa-se a reconstruir, sobre a pressão dessa nova estrutura mundial, a velha dinâmica no Brasil. O Estado puxa o capital internacional, que puxa o capital nacional. Nunca esquecendo que essa fronteira de acumulação do capital vai garantir que, com essa aliança ampla, as cadeias globais de valor avancem também no seu processo de acumulação. E assim, os projetos de infraestrutura podem permitir que finanças, capital internacional e capital nacional se aglutinem e promovam, no longo do tempo, a retomada da economia nacional – e esse é um processo que vai avançar pelos os países do mundo, variando caso a caso, obviamente. Ele vai ajudar a construir os espaços de acumulação necessários para formatação de uma nova economia mundial que atravessa e vai além dos territórios nacionais. A nossa análise está se dando no nível da visão de longo prazo e do ponto de vista do movimento do capitalismo. Como diria Braudel, na sua direção secular. O que estamos vendo – independente de nossa formação econômica, política e ideológica – é o caminho de uma nova economia mundializada (mundial e nacional, global e local) com uma liderança financeira e um Estado alimentando uma nova revolução tecnológica e empresarial. É preciso tirar conclusões indispensáveis para enunciar e propor e executar uma adequada política econômica no país. Trata-se de uma nova economia política exigindo novas políticas econômicas para o país. Precisamos fazer dialogar nossas políticas necessárias de curto prazo com o voo dos pássaros do longo prazo e da longa duração. Não são aquelas que comandam essas, ao contrário, são essas que devem remodelar e criar os espaços para as reinvenções daquelas.

(Responda rápido. Ou, se quiser pense, um pouco, mas exprima sua opinião: o país, o governo, a burocracia, os partidos políticos, a população, as consultorias, os empresários, os críticos do capitalismo sabem disso? Estão ligados nessa? Onde estão e como agirão aquelas energias que se contrapõem ao sistema? Quais forças estão atentas aos novos acontecimentos da História? Ou a História vai se fazer, à margem de suas iniciativas, pelas suas costas?)

(Se você quiser ver para onde foi, está indo e irá a civilização das finanças, veja o filme O Lobo de Wall Street de Martin Scorcese. Talvez seja por isso que Valéry escreveu que as civilizações são mortais.)

Enéas de Souza é economista, psicanalista e crítico de cinema.


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