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27 de setembro de 2016
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10:30

A esquizofrenia argumentativa provocada pelo pós-golpe de 2016

Por
Sul 21
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esquizofreniaPor Eduardo Silveira de Menezes1

Já faz tempo que a lucidez e o bom senso viraram artigos raros no debate político brasileiro. Fascistas saíram do armário. O governo de coalizão ruiu. A democracia foi golpeada. E, mesmo assim, as alianças espúrias do Partido dos Trabalhadores (PT) não foram vetadas nas eleições municipais. Em meio à despolitização de boa parte da sociedade, são cada vez mais recorrentes as “alterações involuntárias” de pensamento. Se, de um lado, muitos dos que, hoje, se dizem indignados com as ameaças aos direitos trabalhistas e a deterioração da educação foram incapazes de fazer o enfrentamento necessário quando da origem dessas propostas; do outro, os que alegam não ter “bandido de estimação”, adotaram, de uma só vez, uma quadrilha inteira de parlamentares envolvidos em escândalos de corrupção.

Nesse contexto, embora nem sempre se admita, existe um consenso. Tendências à direita e à esquerda afirmam ter conhecimento de que, além do PT, outros partidos tradicionais – como PSDB, PMDB e o antigo PFL (DEM) – foram direta ou indiretamente beneficiados pelo esquema de distribuição de propina na Petrobras. O que, antes, poderia ser tratado apenas como uma “desconfiança” revelou-se plenamente possível, em março deste ano, ao ser deflagrada a 26º fase da Operação Lava Jato. Foi nesse período que vieram a público os documentos da empreiteira Odebrecht, indicando que tais práticas existiriam desde a década de 1980, ainda no governo Sarney.

Chama a atenção, no entanto, a indiferença dos que dizem defender a moralização da política quanto à morosidade da Justiça nos casos que envolvem políticos filiados a partidos que fazem oposição ao PT. A perda na capacidade de reagir emocionalmente da mesma forma nos episódios de denúncia de corrupção tem servido para atestar os delírios de uma direita que agoniza intelectualmente. Enclausurados em devaneios antimarxistas, os que se identificam como “antipetistas” perderam completamente a vergonha em defender, mesmo tacitamente, que a prática ilícita dos membros de um partido seria “pior” do que a de outros.

Os mesmos que votaram pelo afastamento da presidenta Dilma Rousseff (PT), sob a alegação de “crime de responsabilidade fiscal”, procuram, agora, evitar que as investigações da Operação Lava Jato possam, de alguma forma, atingi-los. A tentativa frustrada de anistia aos políticos que fizeram uso de recursos de campanha não declarados à Justiça – prática conhecida popularmente como “caixa 2” – ainda não foi descartada. É o tal pacto para “estancar a sangria”, anunciado pelo ministro informal do [des]governo Temer, Romero Jucá, em conversa ocorrida em março, com Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro. Ao ser questionado, na época, Jucá disse não estar se referindo às investigações da Lava Jato, mas sim à “situação econômica do país” – conforme divulgado amplamente pela imprensa.

Curiosamente, ao discursar na sede da Sociedade Americana/Conselho das Américas (AS/COA), em Nova York, Temer fez questão de deixar bem claro que uma coisa não está descolada da outra. Ele admitiu que a suposta rejeição de Dilma às teses defendidas pelo PMDB – chamada de “Ponte para o Futuro” – teria sido um fator decisivo para que seu partido deixasse o governo petista e articulasse o impeachment junto ao PSDB. Como se sabe, o governo Dilma não estava inviabilizando as reformas neoliberais. Mas a exigência do mercado internacional por maior celeridade nesse processo fez com que a estratégia do impedimento avançasse; ganhando, inclusive, respaldo jurídico.

Os que compactuaram com essa farsa – chamada de impeachment – agem, portanto, movidos por uma limitação do senso crítico. Confusos, em seus imaginários, acreditam piamente que estão posicionando-se contrários ao que julgam ser a posição ideológica representativa do PT. Suas abstrações os impedem de enxergar que as famigeradas “mudanças” promovidas pelo governo Temer, em verdade, já estavam em curso antes mesmo do golpe parlamentar. Não apoiaram Dilma, em 2014, quando, inadvertidamente, chegou a mencionar que Filosofia e Sociologia apresentavam alto índice de reprovação – dando a entender que poderia suprimi-las do Ensino Médio –, mas, hoje, de forma ambivalente, saúdam a medida provisória proposta por Temer, cujo caráter semelhante – embora impositivo –, também desqualifica tais disciplinas.

É o mesmo grupo que pouco comentou sobre o início do processo de retirada dos direitos trabalhistas, em 2015, por ocasião do ajuste fiscal, que, entre outros retrocessos, levou à limitação de acesso ao seguro-desemprego. Como bons adeptos da panfletagem neoliberalóide, ficaram eufóricos com a ilusão quase infantil de que a flexibilização/precarização, ainda maior, das relações de trabalho poderia, de alguma forma, beneficiar alguém mais do que os próprios empresários. Isso porque acreditam somente no que as suas fantasias marchartistas os deixam enxergar. Veem influência do que chamam de “marxismo cultural” em tudo. Lutam, desesperadamente, contra um inimigo imaginário. Aliás, o criaram na ânsia de não precisar reconhecer que a excrescência do pensamento neoliberal influi diretamente no trabalho e no ensino, transformando em mercadoria, inclusive, o pensamento que dizem, quixotescamente, combater.

O fato é que, depois da queda de Dilma, os entusiastas da sua deposição encontram-se mais retraídos socialmente. Alternando momentos de desconfiança excessiva – nos casos que envolvem o PT – e de indiferença seletiva – quando se trata dos agentes políticos que arquitetaram o golpe – fazem ressoar discursos que funcionam como a manifestação silenciosa de uma espécie de esquizofrenia argumentativa. É comum que as alucinações se manifestem por meio de vozes midiáticas, as quais, repetidamente, os levam a acreditar em uma falsa ideia sobre a realidade em que vivem. Parafraseando o escritor Oswald de Andrade, é preciso dizer que todo aquele que sofre desse mal não faz mais do que apenas reproduzir o que “ouve”, pois, invariavelmente, acaba deixando de lado o que realmente “houve”.

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1 Eduardo Silveira de Menezes é jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela Unisinos e doutorando em Linguística aplicada – com ênfase em análise do discurso pêcheuxtiana – pela UCPel. E-mail: [email protected].


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