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27 de julho de 2016
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10:01

Governabilidade: a realização do sonho dissimulado da doutrina neoliberal

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Sul 21
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presidencialismo de coalizãoPor Eduardo Silveira de Menezes1

Após o fracasso do presidencialismo de coalizão, encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), muitos discípulos do “Deus Mercado” viram, na crise econômica, uma ótima oportunidade para encobrir a verdade sobre a política-partidária brasileira. Embora possam se gabar de tal iniciativa, não é lá uma tarefa muito difícil. Basta pregar a existência de uma “diferenciação radical” entre os governos tucano e petista, mesmo sabendo que esse discurso resulta muito mais de um desejo do que da realidade concreta. Orgulhosos demais para dar o braço a torcer, não admitem que o aumento significativo no número de “simpatizantes” do livre mercado, por exemplo, se deve, justamente, ao insustentável pacto de classes estabelecido pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

É preciso ser honesto. No capitalismo brasileiro – marcado por uma submissão doentia ao capital internacional – só é permitido ao Estado se organizar de acordo com os mandamentos da macroeconomia neoliberal. É óbvio que, de acordo com a conjuntura, a tendência é adotarem-se medidas díspares – ora de caráter restritivo, ora expansivo. Isso ocorreu, sobretudo, na passagem dos governos FHC/Lula para os de Dilma/Temer, mas não houve – e, infelizmente, não haverá – nenhuma “guinada à esquerda” por parte do PT.

Fernando Henrique foi saudado como o responsável por formular e implantar o tripé básico da economia brasileira (superávit primário, metas de inflação e câmbio flutuante), mas foi o ex-metalúrgico – um liberal convicto –, que, de fato, o consolidou. Nos governos do PT, ao contrário do que tentam fazer crer os risíveis discursos “antipetistas”, não houve ruptura com as orientações religiosas da política econômica deixada como herança pela “era FHC”. Seu carro-chefe, como se sabe, são as economias do governo para o pagamento de dívidas.

Neoliberais antipetistas

Os fatos só podem ser negados por quem não consegue admitir – por preconceito ou puro sectarismo – que, para governar, o PT aceitou se submeter às ordens do Fundo Monetário Internacional (FMI). Esse pessoal é fácil de ser identificado. Não podem nem ouvir falar que o ex-presidente Lula jamais teve um perfil “revolucionário”; que não é – nem nunca foi – socialista. Sabem que a prioridade do seu governo foi o pagamento de juros para credores, em uma clara sinalização de obediência ao mercado financeiro. Mas, para fugir do assunto, o acusam de ter “gastado demais” em programas sociais.

É óbvio que houve investimento nas políticas compensatórias, mas o pagamento de dívidas, com o aumento do superávit, já em 2003, é o que deu o tom do seu governo. Não é à toa que arrancou aplausos do sistema financeiro internacional. E é justamente isso que deixa os “apartidários” – em sua maioria eleitores tucanos – mordidos. O ex-sindicalista foi mais “competente” do que o sociólogo, Fernando Henrique Cardoso, para servir aos interesses do FMI. Vale lembrar, ainda, que, durante a crise de 2008, o governo Lula agiu rápido e conseguiu aquecer o mercado interno, equilibrando receitas e despesas.

Doutrinados pelo capital

Talvez os seguidores do “Deus Mercado” não sejam tão “liberais” quanto pensam. Volta e meia costumam flertar com posições autoritárias, passando rapidamente da defesa das liberdades individuais à condenação de tudo que fuja de uma racionalidade técnica. Aproveitando-se da conjuntura atual, eles começaram a aparecer nas redes sociais com a mesma regularidade daqueles fanáticos religiosos que, às 7h da manhã de um domingo, batem à sua porta oferecendo a salvação para a “vida após a morte”; neste caso, “para a vida após o impedimento da presidente Dilma”.

Tanto faz. Para eles, o paraíso e o inferno, no Brasil, têm início e fim com o PT. Sendo assim, estão acostumados a tecerem muitas críticas aos governos petistas, mas não suportam a ideia de que é preciso estabelecer uma conexão entre a famigerada política econômica dos governos FHC, Lula e Dilma. São contrários à corrupção, desde que envolva o PT. Dizem não ter “bandido de estimação”, mas se emocionaram com o discurso de Eduardo Cunha, por ocasião da renúncia à presidência da Câmara dos Deputados, e não se envergonham de, até hoje, saudar sua condução na farsa do “combate à corrupção”, por meio do impeachment.

Rejeitam Temer, mas não da mesma forma que acusam Lula e passaram a execrar Dilma. Votaram em Aécio porque o consideravam o candidato “menos pior”, mas não ouse dizer a eles que você fez o mesmo raciocínio, no segundo turno, em sua opção pela candidata petista. Acreditam que não há um partido verdadeiramente “liberal” no Brasil, mas vivem em uma sociedade marcada pela lógica de mercado. São contrários à reeleição. Dizem que é uma atitude própria de governos despóticos. Mas, quando confrontados com o argumento de que a emenda da reeleição foi aprovada, em 1997, durante o governo FHC – após muita polêmica envolvendo a compra de votos –, recorrem a personagens caricatos – os seus “guias espirituais” – para contrapor. Não hesitam; se figuras como Olavo de Carvalho disserem que o PSDB é um partido de esquerda, é porque é, e ponto final. Assim explicam o que consideram um “mal-entendido”: se houve erro, a culpa do “esquerdismo”.

Não são muito coerentes. Demonizam o que chamam de “doutrinação marxista do PT”, mas aceitam de forma incondicional o que lhes dizem militantes comunistas arrependidos, como Olavo. Aliás, esses “teólogos do neoliberalismo” são muito espertos. Perceberam a carência de lideranças à direita e transformaram o analfabetismo político em uma oportunidade para ganhar dinheiro fácil. Nada de “meritocracia”, como gostam de dizer. Apenas oportunismo e filosofia barata. Não é preciso fundamentação histórica, política e sociológica. O “argumento” será sempre o mesmo: havendo algo minimamente em desacordo com os princípios básicos da doutrina neoliberal, tratar-se-á do resultado de uma tomada de posição mais à esquerda, ou coisa que o valha.

Sonho do opressor

Nesse contexto, há espaço para que surjam aberrações como a tal “Escola sem Partido”. Os projetos de lei nela baseados – nos níveis federal, estadual e municipal – defendem uma suposta “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Seria engraçado, não fosse assustador, o fato de que, entre os proponentes e principais entusiastas da proposta, estão parlamentares pertencentes à bancada evangélica. Mas não há com que se preocupar – dizem. Afinal, eles juram “por Deus” – o Deus Mercado, obviamente – que não há motivação política nessa iniciativa. Uma bizarrice dessas só poderia ter sustentação em um ambiente político onde os cidadãos estão tão confusos que nem mesmo conseguem identificar a ideologia de quem está no poder.

A política econômica adotada pelo governo, sobretudo, em um contexto de desigualdade – como é o caso da realidade brasileira – é representativa da ideologia que o subjaz. Não tem como negar essa relação. Ao reconhecer que, quando não há, de fato, uma educação libertadora, o “oprimido tende a sonhar em ser o opressor”, Paulo Freire – o mais demonizado dos educadores brasileiros – deixa um recado muito claro. A doutrina neoliberal pode se travestir do que for preciso para atingir seus objetivos – até mesmo de uma contraditória “antidoutrinação marxista/petista”. Para enfrentá-la, no entanto, será preciso coragem. Os partidos políticos devem assumir seus verdadeiros locais de fala. O PT poderia dar o exemplo. Conviria apenas admitir que, para chegar ao poder, se deixou levar pelo sonho do opressor.

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1 Eduardo Silveira de Menezes é jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela Unisinos e doutorando em Linguística aplicada – com ênfase em análise do discurso pêcheuxtiana – pela UCPel. E-mail: [email protected].


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