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2 de março de 2021
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10:19

A vacina, a velhice e a energia dos cataventos

Por
Sul 21
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A vacina, a velhice e a energia dos cataventos
A vacina, a velhice e a energia dos cataventos

Volnei Antonio Dassoler (*)

Em tempos difíceis como o que estamos vivendo, em que o temor do contágio e da morte ronda nossa realidade, que desliza sufocada por um tempo que se prolonga em continuum, desejaria sossego e inspiração para escrever sobre amor e amizade. Dar lugar a outras pautas que desfizessem um pouco do cansaço, que acolhessem o pranto das perdas e simbolizassem a esperança, que, embora um tanto desbotada, sustentasse, a modo equilibrista, nosso necessário devaneio utópico. Um olhar ao redor nos faz ver que, no único centímetro aberto na solidez rochosa, ergue-se brava, orgulhosa e livre uma pequena flor.

Arquivo pessoal/ Gilson Mafacioli

Ansiamos por um futuro que, já sabemos, não será como nada do que já vivemos antes. Por ora, vivemos um tempo de espera, entremeados pela fragilidade provisória de marcadores simbólicos, como a comemoração de aniversários, que garantem um mínimo pertencimento ao laço social. Inventar uma rotina ou criar uma nova normalidade revelam esforços linguísticos de um movimento de preparação para a aceitação de algumas perdas já conhecidas e de outras tantas insabidas. Poderíamos, talvez, arriscar-nos a dizer que, a partir do evento pandêmico, a incerteza – experiência inerente à existência que nos priva da certeza do amanhã – foi alçada a outro patamar.

Cada vez mais, o futuro da humanidade passa pela admissão das consequências coletivas decorrentes das decisões individuais, algo que, até pouco tempo atrás, parecia irrelevante. Se os modos de vida em nosso novo século são mais atrelados (ou afeitos até) ao indivíduo, parece óbvio que a responsabilidade dos atos de cada um em termos de repercussões coletivas se impõe em sua dimensão (e urgência) ética. Talvez, aqui, esteja emergindo um elemento novo na discussão histórica, um dilema não superável entre sujeito e civilização.

Não tive muito êxito no propósito de escolher um tema novo para esta coluna até ser surpreendido com as imagens da aplicação das primeiras doses de vacinas, que se abriram como vereda na experiência labiríntica que vimos vivenciando. Minha inércia e minha indignação foram chacoalhadas pelo alívio incontido experimentado por pessoas de 85, 90, 100 anos que desfilavam com sua alegria, livres do jugo do vírus e da angústia de espectadores passivos. Comovido, acompanhei as imagens e os testemunhos de uma manifestação orgulhosa que ativou, uma vez mais, o impulso desejante que movimenta a vida.

Numa sociedade fascinada pelo corpo, frequentemente as transformações físicas inerentes ao envelhecimento resultam na redução da funcionalidade do organismo a ponto de suscitar diferentes graus de sofrimento, tristeza e queixa. Pele menos elástica, cabelos brancos, redução da visão, perda de centímetros na altura e enfermidades se refletem nos diferentes registros de espelho que funcionam como organizadores imaginários de quem somos. À medida que envelhecemos, o prazer das descobertas e dos encontros dividem espaço com a consciência da finitude e com o luto decorrente das inúmeras perdas que nos acompanham. Neste cálculo, o declínio do valor social da velhice respalda, muitas vezes, modo sutis de exercício de poder intergeracional.

Duas breves cenas. A contaminação de uma senhora de mais idade por um familiar mais jovem a empurrou para os limites do seu quarto. Por força das circunstâncias, ela se viu confinada no confinamento. A cada manhã acordava e pensava se aquele seria o dia em que os sintomas da Covid iriam se manifestar e a fariam adoecer. Retalhos, agulhas e linhas lhe fizeram companhia. O dia do adoecimento nunca chegou e, finalmente, após a quarentena, pôde abrir as portas do quarto e recuperar a sua liberdade. Quando lhe perguntei sobre esse período, respondeu: “sou cortada de alça de gaita”. Diante do meu desconhecimento, esclareceu que se tratava de um ditado missioneiro que ela usava para fazer referência, entre outras coisas, às marcas das adversidades impressas em seu corpo e alma e que a haviam preparado para mais este novo enfrentamento.

Ao longo da vida, vi minha mãe mais acostumada ao silêncio do que às falas, lugar este ocupado pelo meu pai. A voz dela se sobressaía sempre que, impelida pelo coração, dava vazão ao canto na igreja ou em encontros festivos. Não era frequente, mas era e ainda é quando o júbilo toma conta dela. Em suas lembranças de infância, as músicas chegavam pelo rádio, cujo funcionamento dependia da disponibilidade de energia armazenada, um recurso nem sempre acessível. Isso levou seu pai a cravar poéticos cataventos no alto de um morro; pequenas hélices de madeira giravam à mercê do vento recarregando a bateria do raro aparelho de inestimável valor. À noite, caderno e lápis na mão, minha mãe, junto com irmãos, acompanhava as melodias enquanto copiava as letras das canções.

No dia que antecedeu a sua vez da vacina, falei com ela para saber sobre a sua expectativa. Ela me respondeu que havia feito uma limpeza geral na casa, prevenindo-se da eventual ocorrência de algum efeito adverso que pudesse limitar sua rotina. Perguntei, uma vez mais, se não seria oportuno contratar uma pessoa para, caso fosse necessário, fazer essas tarefas, ao que, prontamente, respondeu: “quando eu ficar velha, sim”. Neste momento crítico da humanidade, sinto-me grato e feliz por ver garantida a prioridade da vacinação para os mais velhos, não apenas pela vulnerabilidade orgânica que os caracteriza, mas pelo que ainda inspiram com suas histórias, ancoragem simbólica que, antecedendo nossa existência, nos oferece terreno para a vida.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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