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9 de fevereiro de 2021
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10:17

Todos os mundos possíveis

Por
Sul 21
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Todos os mundos possíveis
Todos os mundos possíveis
Foto: Matthew/Pixabay

Luciano Mattuella (*)

“Direi isto suspirando
Em algum lugar, daqui a muito tempo:
Dois caminhos se separavam em um bosque amarelo, e eu…
Eu escolhi o menos percorrido
E isso fez toda a diferença.”
Robert Frost, “O caminho não escolhido”“

À Violeta: bem-vinda a todos os mundos possíveis!”

Recentemente, tive que ir ao médico. Nada grave, apenas questões cotidianas. Passada meia hora do horário marcado, a secretária me avisa que o “doutor” está atrasado, mas logo chegaria a minha vez. Num primeiro momento, fiquei incomodado, preocupado que meu tempo de atendimento seria abreviado por conta deste atraso.

Engano meu. De longe.

Sendo a minha primeira consulta, o médico começou a me fazer as perguntas esperadas sobre o quadro geral da minha saúde: altura, peso, condições pré-existentes, histórico familiar… Eis que, então, ele me faz uma pergunta que me deixa silencioso: “Se tu tivesses de novo quinze anos, tu farias tudo igual na tua vida?”. Percebendo a minha perplexidade, o médico sorri e explica: “Às vezes os sintomas têm relação com coisas que a gente nem imagina”. O psicanalista em mim sorri de volta, sentindo-se acolhido. Uma hora depois, eu estava saindo da consulta com uma requisição de exames de sangue e uma inquietação existencial.

Poucos dias depois, escuto o podcast “Psicanálise Afora”, um episódio em que a colega Eliana Betancourt, psicanalista brasileira que mora em Nova York, é entrevistada (ela que também é curadora do programa). Eliana lembra o artigo Romance Familiar, em que Freud propõe que as crianças tendem a imaginar como seria terem sido filhas de outros pais – o que, muitas vezes, surge como uma fantasia de adoção: “não posso ser filho desses meros mortais, devo vir de um linhagem nobre”. Um pensamento um tanto narcisista, mas necessário para deslocar os pais de um lugar de perfeição e poder se distanciar um pouco das amarras dos ideais familiares. O passo seguinte, claro, é saber que não só os pais, mas todos nós somos simples neuróticos tentando fazer o que poderemos com o que temos no momento. Fazemos as pazes com os pais que tivemos ao nos vermos como os seus filhos possíveis.

A lembrança do texto de Freud me fez pensar novamente na pergunta do médico. Fantasiar ser filho de outros pais significa não só a abertura da possibilidade de construir um passado diferente para si, mas também a invenção de um futuro em que se tem maior ingerência. Como fã de ficção científica que sou, logo me imaginei viajando ao passado e vendo o Luciano com quinze anos de idade, observando cada ato seu (meu) e imaginando quais pequenos gestos podem ter influenciado o tempo que viria adiante. E se eu tivesse feito o primeiro vestibular para Psicologia, e não para Ciências Econômicas? Quais seriam meus amigos hoje? Eu moraria ainda em Porto Alegre? E se eu tivesse me rebelado contra a paixão do meu pai e tivesse me tornado colorado, e não gremista? E se eu não gostasse tanto de ver meu pai chegando em casa com a pasta de couro preta, será que eu teria preferido um estilo menos formal de me vestir? E se eu tivesse escutado as entrelinhas do que meu pai dizia, divertidamente, quando cortava carne com esmero: “Eu devia ter sido cirurgião”, será que eu teria feito Medicina? Talvez, se tudo isso tivesse acontecido, eu teria sido um cirurgião de camiseta e bermuda comemorando o gol de Gabiru no mundial de 2006.

Ou, ainda assim, eu poderia estar no mesmo lugar que estou hoje.

Algo que aprendemos com a psicanálise é que a vida por si só não tem sentido a não ser aquela mínima costura narrativa que damos a ela. Estamos sempre atrasados ao vivido: o que contamos de nós mesmos é o que nós somos – isso nos tira do mundo das coisas e nos dá lugar no mundo da linguagem. Somos esta frágil tessitura de palavras prestes a romper a qualquer momento, como na perda de alguém importante, no fim de um casamento, nas catástrofes íntimas. Somos todos seres a ponto de quebrar, mas sempre na possibilidade de nos refazermos a partir dos cacos de passado que recolhemos do chão.

Estes momentos de ruptura nos obrigam a ver do que somos feitos.

Nestes tempos pandêmicos, me incluo no grupo daqueles que tiveram seus mundos desmoronados. Tenho me visto a cada dia lidando com os escombros de uma realidade que já sei que não retorna mais, mas cujos alicerces agora estão expostos como ferida aberta – para o bem e para o mal. Como se estivéssemos relançando aquela dúvida de infância: e se não formos mais filhos daquele mundo que conhecíamos? E se tudo estiver diferente, seremos adotados afetuosamente por esta realidade que está se construindo?

Estes dias li uma matéria – infelizmente não lembro onde – que dizia que os primeiros tempos da pandemia foram tomados por um aumento no número de ansiosos e, agora, percebe-se um incremento nos deprimidos. É o que tenho presenciado no consultório, também. Entretanto, como psicanalista, entendo a depressão não como um esvaziamento da vida, mas como uma reclusão da qual se pode sair fazendo-se as perguntas certas. A depressão como um casulo necessário para que possamos ficar um pouco distantes da dura realidade do mundo para recolher os cacos quebrados. E, a partir daí, construir um mundo – uma filiação – nova. Há muita potência na tristeza e na angústia, ainda que sejam afetos dolorosos.

O psiquismo é como um daqueles multiversos das ficções científicas: nele estão inscritas não só a vida que vivemos, mas também todas aquelas que gostaríamos de ter vivido e também as que esquecemos ter vivido. No inconsciente, habitamos todos os mundos possíveis e, em geral, nos sentimos frustrados com esta distância entre a vida que temos e que poderíamos ter tido. Entre o que somos e o que poderíamos ter sido. Alguns de nós transformamos esta frustração em insatisfação, outros em impossibilidade, e ainda outros tornamos estas possibilidades assustadores para não termos que lidar com elas. Quando nos deprimimos, estamos assombrados por estas potencialidades desperdiçadas. Quando ansiosos, fazemos a escolha pelo pior futuro visível. De toda forma, estamos sempre lidando com a frustração de termos sido tão menos do que julgávamos que poderíamos ter sido. Alguns momentos da vida – e também uma análise – nos permitem olhar com carinho para aquilo que já construirmos e, a partir daí, animar este desejo que foi dando consistência às nossas escolhas. Ao dissolvermos alguns ideias, podemos resgatar aquilo de que já somos feitos e, a partir disso, tornar o futuro um pouco mais esperançoso.

Um outro psicanalista, o francês Jacques Lacan, falava disso usando a metáfora das cartas de um baralho: nascemos com um número reduzido de cartas em nossa mão – as contingências que a vida escolheu para nós -, e com uma instrução de jogada para fazermos com estas cartas – aquilo que os nossos pais ou a cultura desejam que sejamos. O que nos cabe é poder imaginar outras jogadas possíveis dentro deste universo finito de possibilidades. Nunca faremos a partida ideal, mas, enfim, sempre termos este ponto de partida ao qual retornarmos quando o jogo ficar difícil. Imaginar ser filho de outros pais, de outro mundo, significa termos mais possibilidades de jogadas e não nos vermos como artefatos de um destino pré-determinado.

Já fiz os exames de sangue e está tudo bem.

Por via das dúvidas, vou levar um baralho de cartas na consulta de retorno.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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