Colunas>Coluna APPOA
|
2 de fevereiro de 2021
|
10:42

Ciência e desamparo

Por
Sul 21
[email protected]
Ciência e desamparo
Ciência e desamparo
Protesto contra governo Bolsonaro, em Brasília. (Foto: Ricardo Stucker/Fotos Públicas)

Gerson Smiech Pinho (*)

No último domingo, entre os diversos protestos dirigidos ao governo federal, um grupo de manifestantes realizou uma intervenção em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, na qual foi evocada a recente crise de falta de oxigênio em Manaus. As imagens do ato performático com certeza produziram um forte impacto para quem as assistiu – equipados com roupas verdes, tal como se vestissem trajes hospitalares, e com um saco sobre a cabeça, os participantes gritavam e agonizavam desesperadamente por falta de ar enquanto, pouco a pouco, seus corpos desabavam e tombavam até o chão.

O efeito desconcertante e perturbador da cena dramatizada se deu não somente por evocar os limites de nossos corpos, mas também por lembrar o lugar de nossos semelhantes e da coletividade para que a existência de cada um e de cada uma seja viável. Nessa direção, o ato de respirar marca o mais precoce movimento de separação que experimentamos na relação com outro ser humano. No instante imediato ao nascimento, tornamo-nos capazes de inalar e expelir o ar previamente a qualquer lampejo de autonomia – antes mesmo que possamos coordenar o mais mínimo movimento do nosso corpo. Ainda que um recém-nascido esteja imerso no mais absoluto sentimento de desamparo por necessitar visceralmente da sustentação e da acolhida de outro humano para sua sobrevivência, já consegue respirar por conta própria. Possivelmente, por esta razão, a faculdade de respirar e, mais ainda, sua perda sejam tão emblemáticas da insuficiência e da fragilidade de nosso organismo e da vida enquanto tal.

Se a experiência de desamparo que nos acompanha desde o nascimento é capaz de engendrar um brutal sentimento de mal-estar, é também responsável por dar base à civilização, visto que a sustentação dos laços coletivos permite suportar e fazer face à nossa fragilidade estrutural. Enquanto constituinte da subjetividade, o desamparo desvela nossa radical dependência em relação ao outro e nossa irremediável necessidade de conexão através de produções culturais capazes de trazer alguma segurança e conforto, em campos como a arte, as diversas formas de religião e a ciência. Em tempos recentes, esta última vem sendo atacada e desvalorizada sistematicamente em nosso país, especialmente no que diz respeito ao enfrentamento da pandemia do coronavírus.

Nesse sentido, autoridades têm desqualificado uma série de orientações propostas tanto pela OMS quanto por inúmeros pesquisadores, como a defesa do isolamento social, o uso de máscaras, a prudência em relação à adoção de medicamentos e o investimento na vacinação de toda a população. Além disso, vêm minimizando a gravidade da infecção por COVID através de informações sem fundamento e soluções simplórias, reduzindo a grave situação que atravessamos a uma hipotética histeria disseminada pela mídia.

O ataque dirigido à ciência tem sido particularmente eloquente e suas consequências não tem sido poucas. Consistem em atentados que não têm como alvo edificações ou monumentos, mas o saber e o conhecimento que constituem nosso patrimônio cultural. Não por acaso o Brasil figura como o segundo país com mais mortos por COVID e como último colocado no ranking que avalia a qualidade da gestão governamental em relação à pandemia. Para além desses números, na medida em que as referências científicas que nos asseguram minimamente são destituídas de valor, resta a experiência do desamparo e a sensação de que se está à deriva.

Em 1933, Freud escreveu uma conferência intitulada “Acerca de Uma Visão de Mundo”. Ali, procurou alinhar a psicanálise à ciência, apesar de ter aberto caminho para o estudo daquilo que escapa à racionalidade como os sonhos, o inconsciente e as fantasias. Desse modo, ratificou a ciência como via genuína para aproximar-se da verdade, tendo afirmado que tudo aquilo que se coloca como proibição ao pensamento e se opõe a uma evolução nesse sentido “é um perigo para o futuro da humanidade”. Que o alerta de Freud possa ser lembrado com atenção e nos ajudar a situar algum limite frente à barbárie.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora