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26 de janeiro de 2021
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10:33

O desodorante, o desejo e a rua

Por
Luís Gomes
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O desodorante, o desejo e a rua
O desodorante, o desejo e a rua
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Marcia H de M Ribeiro (*)

Perto da porta do supermercado, sentado na calçada com as costas apoiadas na grade que separa a vida de dentro da de fora de uma casa, um jovem bonito em roupas rotas e sujas, ladeado por sacolas com arroz e leite, me interpela: – Ô, moça, compra um desodorante pra mim? Eu peço e ninguém me dá.

Fiquei desconcertada. Nenhum rodeio serviria para formular um pedido desses, pois não se tratava de acionar a piedade ou apelar à solidariedade cidadã, tão usual nessas situações. “Pode me ajudar? Ainda não comi hoje. Qualquer moedinha serve”. Nada disso. Ele foi direto ao ponto: quero um desodorante. Sem preâmbulo sobre sua condição desfavorável, maltrapilha e tão mal cheirosa. E por que não dar? Ou, melhor dito, porque deram-lhe leite e arroz se ele queria um desodorante?

A maior parte das “campanhas contra a esmola” se sustentam na ideia de que a doação de dinheiro estimula a mendicância e, portanto, a permanência na rua e todos os “vícios”, perpetuando o circuito da miséria. A substituição por alimento parece então ser a via para manter a caridade livre da culpa que esse dinheiro carrega. De qualquer forma, trata-se de uma escolha sobre dar ou não, que nem sempre participa do cálculo “corrigir o comportamento alheio” transmitido pelas mensagens dessas campanhas. Nesse sentido, fixar uma escolha a priori, como se fosse princípio universal a dirigir nossa conduta, empobrece a experiência.

Nos anos 1990, comecei a frequentar semanalmente duas rodoviárias do Estado, uma que me levava ao trabalho, outra que me trazia para casa. As viagens eram noturnas e os personagens que encontrava eram, por um lapso de tempo, quase sempre os mesmos.

Na primeira rodoviária, um grupo de crianças se abrigava sob o alpendre envoltas em cobertores. Nem bem o táxi que trazia o viajante estacionava, uma delas se levantava para abrir a porta e pedir as moedas do troco. Flávio não se convencia com o primeiro não. Seguia insistindo atrás do viajante. Depois da primeira vez, continuou a me acompanhar – ainda que as moedas soassem temporariamente seguras no fundo do bolso – e a conversa nos permitia esquecer por um momento porque havíamos nos reunido de início. Conversávamos até o ônibus estacionar ou ele partir porque o assunto tinha lhe desagradado. Não recordo quanto tempo isso durou, mas lembro bem a noite desde a qual nunca mais nos vimos sem termos podido nos despedir. Minha imaginação escreveu destinos cruéis, e só se acomodou num final menos pior ao encontrar um de seus companheiros de rua.

Na outra rodoviária, uma mulher esquálida desfilava com uma criança no colo com a boca presa a sua teta murcha desnuda. Parava na frente do viajante e, sem dizer palavra, estendia uma mão à espera de dinheiro. Frequentemente recebia uma negativa com um movimento de cabeça. A cena se repetia uma e outra vez com todos que estávamos na plataforma de embarque, mesmo quando éramos muitos. Nada de trocas faladas, apenas a montagem no aguardo da comoção pela piedade ou pela repulsa. Ela também desapareceu. Foi um alívio saber que as instituições públicas de assistência social haviam coibido o aluguel da criança que ela carregava como objeto para compor aquela representação espúria.

É certo que qualquer pedido pode receber um não como resposta. Uma negativa é preferível à indiferença, pois, por mais paradoxal que possa parecer, revela o reconhecimento da existência do semelhante. Dar outra coisa em substituição ao que foi pedido, por outro lado, como aconteceu com o jovem que queria um desodorante (quem sabe para se fazer desejável para alguém), evoca uma pretensão de regular e corrigir o querer alheio. Certo, o leitor pode refutar essa tese lembrando que o doador podia não ter dinheiro para comprar o desodorante. Talvez, se o preço de um e outro não fossem quase iguais. Além disso, dar o que se supõe preferível, à revelia do pedido, corresponde também, e principalmente, a não reconhecer nesse semelhante nossa humanidade. Afinal, o humano em nós pode resistir às pequenas mortes quando, mesmo nas mais precárias condições da existência, continuamos desejando para além dos objetos da necessidade, inclusive um desodorante para disfarçar o cheiro da miséria material a exalar do corpo na rua.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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