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12 de janeiro de 2021
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10:25

Marielle: Clarice faz cem anos aos olhos de 2021

Por
Sul 21
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Marielle: Clarice faz cem anos aos olhos de 2021
Marielle: Clarice faz cem anos aos olhos de 2021
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Robson de Freitas Pereira (*)

Passado recente

Há mil e um dias, mil e uma noites, no escuro de nosso tempo, quando mataram Marielle Franco e o Anderson Gomes, meu primeiro pensamento, depois do impacto da notícia e da angústia foi: momento crucial para uma resposta unificada (nossa cultura) em termos políticos mais amplos. Um crime perpetrado por profissionais, um ataque às instituições que precisaria ser respondido com autoridade e veemência. Mataram uma vereadora, mulher, negra , homossexual, ativa defensora dos direitos humanos ; entre outras razões porque combatia milicianos e se preocupava simultaneamente com os familiares de policiais civis e militares. Sem falar que sua trajetória pessoal, mostrava a realização de qualquer sonho empreendedor moderno: origem pobre, esforçada, estudou e conseguiu “vencer na vida”.

Assassinaram um símbolo de tudo o que poderia representar um avanço civilizatório em termos de desenvolvimento humano e social. Não precisava gostar dela pessoalmente; afinal não se trata de amizade e simpatia. Podia-se ter em mente sua função político-social como elemento básico para a democracia e o Estado. Era isto que estava ferido, ameaçado com este assassinato.

Minhas expectativas não duraram muito. Em menos de 24 horas, a vítima começou a ser atacada, o assassinato a ser minimizado. Impossível de ser apagado, tentava-se diminuir sua importância. Injúrias das mais diversas: de manter relações íntimas com o tráfico, até o planejamento da própria morte. As manifestações racistas e homofóbicas manifestas ou veladas infestaram as redes sociais; pois vivíamos(?) um momento de hegemonia e expressão desavergonhada destes tipos.

A bem da verdade, houve parlamentares, policiais e juristas que honraram suas funções. Outros, só enlamearam um pouco mais a farda, a toga e o mandato parlamentar. Sim, vamos acrescentar os civis amedrontados que acreditaram nas fake news e ajudaram a sepultar a oportunidade de sustentar nossa democracia contra a violência que se consolidava rapidamente. Afinal, a mentalidade “nós contra eles” ainda tinha vigência hegemônica. Podem me chamar de ingênuo. Por acreditar, mesmo que por instantes, numa epifania fulgurante que poderíamos fazer disto um exemplo.

Passado muito recente

Segunda cena: 6 de janeiro de 2021. Dia de Reis. Mal nos despedíamos de um ano que não terminou e assistimos , em tempo real, a invasão do Capitólio, em Washington. Susto intenso e alívio -parcial em poucas horas. Velocidade do tempo dos acontecimentos na atualidade. Ao ver aquelas cenas tinha a sensação de “vou pra rua”, vou brigar. Imagino as pessoas que queriam preservar a democracia e moravam perto. Elas iriam pro local dos acontecimentos, fazer uma guerra civil, se as autoridades não reagissem.

O último tiro do presidente derrotado saiu pela culatra, mas testou sua convocatória e mostrou a força física da truculência e da barbárie. E, evidenciou, mais uma vez, os riscos da lógica identitária em seu limite: defendo meu grupo, meus ideais, o resto não faz parte da humanidade. Ao final, Biden foi ungido presidente. Vimos Policiais negros defenderem a democracia e, Georgia on my mind porque negros conseguiram feitos políticos históricos naquele Estado sulista e tradicionalmente racista (lembrem-se que na década de 60 impediram Martin Luther King de discursar e Ray Charles, os Stones e outros artistas se recusaram a tocar lá enquanto os teatros continuassem segregados).

Futuro do presente

Hoje, desde as eleições passadas, sopraram novos ventos. Não tão rapidamente quanto gostaríamos. Mas os sinais ficaram mais evidentes no ano passado (este que ainda teima em permanecer infectando). Mesmo com, e talvez por causa, da pandemia que intensificou diferentes crises – distanciamento social, debacle econômica, intensificação dos sintomas de relacionamento, de sofrimento pessoal e comunitário, mostrando o esgarçamento dos laços afetivos e sociais. Passamos dos 200 mil mortos.

Porém, no Rio da Marielle e noutras cidades do Brasil – iniciativas sociais nas comunidades são intensas e variadas. Não é somente tráfico, milícias, corrupção e incompetência administrativa – que as vezes fazem o carioca se perguntar se deveria envergonhar-se ou orgulhar de ter tantos ex-governadores e prefeitos presos por corrupção e outras mutretas. Se era para prender depois, por que eleger primeiro? Deixar os “pobre ricos “ e pastores de sucesso fazerem o pé de meia primeiro? É muita generosidade com quem não precisa de ajuda para gozar.

Quais são os novos ventos? O que nos possibilita saber que estamos vivendo uma situação que não é estática? A incerteza e o medo não emudeceu nosso desejo de mudança para melhor. Fomos capazes de enfrentar o escuro das mil e tantas noites compartilhando histórias que nos sustentam. Em outras palavras, sustentando atos de superação e solidariedade que demonstram quem somos de verdade, não as histórias para boi dormir que seduziram tanta gente a ponto de abandonar o próximo a sua própria sorte e querer proteger sua milícia para continuar a espoliação. Sherazade sobreviveu, salvou as mulheres do reino e sua ficção atravessou os séculos.

Este 2021 está só começando, “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.[1]

[1] Verso de “Sujeito de sorte”, de Belchior, sampleado por Emicida em sua canção manifesto AmarElo.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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