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19 de janeiro de 2021
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12:20

Incesto: a escrita impõe o que não se quer ouvir

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Sul 21
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Incesto: a escrita impõe o que não se quer ouvir
Incesto: a escrita impõe o que não se quer ouvir
Foto: Divulgação

Alfredo Gil (*)

Há quase um ano, escrevi aqui mesmo uma coluna a respeito do livro de Vanessa Springora, intitulado Le Consentement (O Consentimento). Ela relata sua relação íntima, aos 13 anos de idade, com o escritor quinquagenário, Gabriel Matzneff, que, iludindo-a com a ideia de um amor exclusivo, acabou exercendo domínio e controle pedocriminoso sobre a jovem adolescente.

Dia 7 deste mês um novo escândalo estoura e, como para Vanessa Springora, o instrumento de detonação é a escrita. La Familia grande (Ed. Seuil) é o relato e o grito de indignação de Camille Kouchner que denuncia as agressões sexuais sofridas pelo seu irmão gêmeo, Victor, executadas pelo padrasto. Ela agradece seu irmão por ter aceito a publicação, tomando o cuidado de modificar seu nome.

La Familia grande é o desabafo de 30 anos de silêncio; 30 anos de culpa por não ter conseguido proteger seu irmão, abusado sexualmente pelo padrasto; 30 anos para processar uma forma de violência que não dizia seu nome, e que ficou muito tempo sem ser compreendida e que, naqueles anos, só inspirava algo de errado.

A família de Camille é grande por diferentes razões. Ela relata inúmeras lembranças das férias de verão no sul da França onde, em uma imensa casa de campanha, se reuniam familiares, tios, tias, primos e primas, mas, também, notáveis da intelligentsia francesa – políticos de envergadura, ministros – num clima efervescente de espírito não-conformista, de muita alegria, amor, desejo de liberdade e de conquistas, tanto individual como coletivo.

A mãe de Camille, Évelyne Pisier foi uma das primeiras mulheres graduadas com o título de professora agregada de direito público e ciências políticas. Próxima de Claude Lefort, Cornelius Castoriadis, ela assina trabalhos com François Châtelet. A lista dos méritos é longa. Ela conjugará militância feminista com desejo íntimo, indo para Cuba nos anos 60 e encontrando amorosamente Fidel Castro. De retorno a Paris, é com Bernard Kouchner que se casa. Com ele nasce a progenitura do irmão mais velho de Camille, seguido dela e do irmão gêmeo. Seu pai é descrito como amoroso mas gritão, e por vezes autoritário. Muito ausente em casa, é presente alhures. Pois, médico, é co-fundador de uma ONG que ainda hoje provém um serviço de grande importância: Médicos sem Fronteiras. Ele foi ministro da saúde durante os mandatos de François Mitterrand et Jacques Chirac e ministro das relações exteriores de Nicolas Sarkozy, entre tantos cargos importantes.

Os pais se separam e Camille tem 8 anos quando sua mãe encontra o homem que se tornaria seu padrasto. Eles se mudam para um grande apartamento. O relato de seu encanto por este homem é tocante e diz da importância que ele terá : « meu padrasto organizava minha felicidade, me ensinava a respirar…substituía meu pai (…) depois da escola, de volta para casa, eu me infiltrava no seu escritório para, com ele, escutar Chopin e Schubert, que minha mãe detestava ». Trata-se de Olivier Duhamel, que no livro nunca é nomeado. Figura notória no mundo político, eminente especialista do direito constitucional, tem grande renome no mundo universitário, sobretudo na prestigiosa Sciences Po onde é professor emérito.

O amor filial se estende rapidamente e se intensifica com o tempo. O fascínio exercido pelo padrasto não pede explicação, ele é bajulado por muitos. Tudo isto num astral de liberdade pós-68. Sua mãe que é uma intelectual conhecida por ter feito do combate das mulheres uma prioridade, encoraja Camille, com 11 anos, a exercer plenamente sua liberdade. Ela conta para filha que sua primeira relação aconteceu com 12 anos, e acrescenta « transar é a liberdade, e tu, o que estás esperando ? ». Da parte de uma tia materna a incitação continua « com a tua idade e tu ainda não viu o lobo ? ». Ela recorda de uma piscada de olho do padrasto, numa forma de cumplicidade, mostrando que acariciava, por debaixo da mesa, as pernas de uma convidada que parecia também se deleitar. Camille decide contar a cena para mãe que dirá « não há nada de mal nisto, eu estou sabendo. Trepar é nossa liberdade ». Chamar os pais pelos nomes reduzia a hierarquia geracional, e beijo na boca entre pais e filhos fazia parte do espírito libertário.

Essa liberdade de expressão na fala e nas condutas, de uma proximidade quase (o quase é importante) sem limites não parece chocar nem ofuscar os mais jovens, dentre os quais Camille e seus irmãos. Isto tudo acontecia num astral que alternava festividades e brincadeiras, mas também discussões de diferentes esferas intelectuais, que ela descreve com admiração e felicidade.

Ora, em meio a tanta transparência, liberdade, espontaneidade nas manifestações do desejo por que motivo as visitas do padrasto no quarto do seu irmão, Victor, desde os 13 anos de idade, ao longo de pelo menos dois anos, devem ser mantidas em segredo? Num mundo em que tudo é compartilhado abertamente, por que tais barreiras denotando exclusividade e possessão?

Desesperado, escreve Camille, seu irmão tenta definir o que acontece e vem lhe perguntar: « o que tu achas? Isto é mau? Eu não sei se tenho que ficar brabo, ele é gentil comigo, tu sabes». Para tentar suportar a carga da violação do eminente perito do direito constitucional – violação física pela imposição, e psicológica porque se dá num laço amoroso já sedimentado – o garoto implora à sua irmã: « Respeita o segredo. Eu lhe prometi, então tu promete. Se tu fala eu morro. Tenho vergonha. Ajuda-me a dizer não, por favor».

Camille, a irmã gêmea, vai respeitar o segredo durante 30 anos. Mas a que preço? « A culpa é como uma serpente, e nunca se sabe quando ela vem te paralisar. Como um veneno, a culpa se infiltrou em mim e logo invadiu todo o meu cérebro e meu coração. Ela se desloca de objeto em objeto. Ela se implanta em tantos rostos e te faz lamentar tudo e qualquer coisa. Minha culpa tem diferentes idades. Ela festeja todos seus aniversários ao mesmo tempo que eu. Minha culpa é gêmea. Uma nova gemelhança ».

La familia grande é um livro sobre a liberdade nas suas diferentes formas. Liberdade social de uma época, liberdade individual – inclusive, é claro, sexual. Liberdade de expressão.

Os livros de Vanessa Springora e Camille Kouchner convergem em vários pontos. Pela coragem de tornarem público um sofrimento íntimo que fora impedido de ser expresso, sem que, por consequência, as autoras pudessem ter, até então, o reconhecimento social e legal de suas dores. Elas ilustram como a liberdade daqueles tempos foi terreno fértil e argumentativo para justificar a manipulação perversa que opera e instrumentaliza as crianças para a obtenção de gozo do agressor. As obras descrevem detalhadamente um longo processo de desestruturação de suas imagens, de fragmentação de seus corpos e de perda do sentimento de existência, ou seja, de identidade. Ensinam também algo essencial relativo à função da escrita como forma de restabelecimento – que não se deu pela fala – de um lugar de uma experiência traumática e de um dito doloroso, já que essas experiências não puderam ser escutadas nem acolhidas, sendo por vezes negadas. O trabalho de escrita e suas publicações permitem assim que a culpa e a vergonha retornem para os devidos autores dos crimes.

*Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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