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5 de janeiro de 2021
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10:37

2020 (antes de você ir)

Por
Sul 21
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Foto: Luiza Castro/Sul21

Volnei Antonio Dassoler (*)

Chegamos ao fim de 2020. Quiséramos que este ano se encerrasse com a última página do calendário trazendo-nos unicamente a simples retrospectiva dos acontecimentos. Todos os anos são diferentes entre si, uma combinação singular de fatos esperados e de contingências imprevisíveis que marcam a vida individual e atravessam o destino coletivo. Curiosamente, nenhuma das previsões feitas no final de 2019 foi capaz de vislumbrar a conjuntura particular e dramática que assombrou o mundo e levou uma parcela significativa da população a situações limite em torno da sobrevivência física e psíquica.

De origem latina, “retrospectiva” é uma palavra que nomeia a ação de “observar para trás”, aludindo, assim, à apresentação de um determinado percurso organizado geralmente de maneira cronológica; uma espécie de “balanço” cultural, esportivo, político, pessoal ou profissional. Da mesma origem, “inventário” deriva do verbo invenire (“achar”/“encontrar”) e serve para designar uma operação de registro e caracterização de bens, documentos, ações e patrimônio, comum no campo do direito, da contabilidade e do universo da cultura. Após esse ano atípico, no lugar da mirada linear oferecida pela retrospectiva, a noção de inventário surge como um significante novo para a leitura do tempo presente em nosso país. A saída de cena da retrospectiva em favor da palavra “inventário” opera um deslocamento importante na análise do acervo semântico do ano (“covid”, “vacina”, “crise ambiental”, “feminicídio”, “racismo estrutural”) abrindo uma perspectiva de desestabilização das narrativas protocolares. Além disso, nesta forma de análise, é possível destacar alguns componentes cujo valor que se sobressai na possibilidade de repercutirem na imensidão dos corpos e almas.

Deste inventário particular de 2020 extraímos a conclusão de que não é possível abordar a dinâmica social do Brasil, nem tampouco falar em democracia sem incluir a violência de gênero e a questão étnico-racial na análise de indicadores comuns como educação, habitação, saneamento, moradia, emprego e saúde. De certa forma, os efeitos sistemáticos da exclusão do acesso aos direitos constitucionais e o desprezo por determinadas formas de vida – tristemente entoado por uma parcela da população brasileira- fazem com que temas associados à pauta identitária constituam a matéria-prima de debate inadiável que deve ser assumido coletivamente. Nesse contexto, muitos de nós têm a responsabilidade política e o compromisso ético de se manifestar de forma crítica acerca da estrutura precária e, por vezes, falaciosa do funcionamento democrático das instituições que perpetuam regimes de socialização desigual e hierárquico no solo pátrio.

Na aparência, o Brasil contemporâneo em nada se parece com a experiência inicial descrita pelos primeiros colonizadores. Entretanto, é preciso dizer – e não é nenhuma novidade – que, na origem do nosso país, não havia nenhum projeto de nação. Aquilo que veio a se tornar o Brasil foi uma dentre as várias experiências coloniais das metrópoles europeias, que pouco ou nada se importaram com o destino das terras ocupadas, empenhadas que estavam na expropriação das riquezas e na exploração dos povos.

Esse parágrafo indecente do acontecimento Brasil, é retratado nos livros escolares pela apresentação asséptica de uma sucessão linear de fatos inseridos em períodos históricos, sociais e políticos. Estas mesmas narrativas ignoram a presença de traços (ex.: submissão e opressão de certos tipos de corpos e acúmulo da riqueza) que constituem elementos estruturais da nossa história desde a colonização até os dias de hoje. Nesse ponto, o significante estrutural emerge como um indicador fértil desvelando que a organização da nossa sociedade funciona historicamente movida por práticas que reproduzem e naturalizam uma condição de subalternidade respaldadas por valores discriminatórios disseminados nas diferentes instâncias do laço social. Assim, a violência contínua contra o corpo das mulheres -violência de gênero- e a subalternidade histórica dos negros em termos de igualdade de acesso a espaços institucionais e funções sociais são testemunhos da incidência estrutural destas hierarquias. Em síntese, há algo na causalidade e na continuidade desses cenários que faz com que eles permaneçam velados e não reconhecidos, dificultando o reconhecimento da lógica que sustenta, por exemplo, o racismo estrutural e a violência de gênero (feminicídio).

Para desconstruir narrativas hegemônicas que visam unicamente a perpetuação e a garantia de privilégios, a presença do elemento estrutural atuando nos acontecimentos do cotidiano e sua força de determinação precisam ser explicitadas de maneira acessível e articulada. Frente à violência sofrida no corpo, faz-se necessário recuperar a potência da palavra. Embora, o simples uso da palavra não garanta um bom efeito, é por meio do suporte do aparelho da linguagem que corpo e sujeito se colocam em relação ao mundo. O inventário de 2020 aponta a necessidade de abrir espaço para novos (as) protagonistas, assim como nos encorajar a inventar novas palavras que operem como categorias auxiliares do pensamento crítico num trabalho coletivo de informação e reflexão com vistas a construção de novas narrativas mais inclusivas e verdadeiramente democráticas.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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